Ela seguiu um chamamento interior forte. Entrou pelas águas calmas do mar. Pé ante pé, até que se viu obrigada a nadar para seguir. O impulso fez-se mais irresistível, não podia voltar atrás.
As águas límpidas eram fascinantes, conseguia ver até bem longe. Pequenos peixes e algas pairavam ao seu redor, mas algo maior se aproximava. Não conseguia distinguir bem o que era, uma mancha apenas que se aproximava. Não existia medo porque sentia que era aquilo que a puxava a si, com um magnetismo arrebatador. Pouco a pouco, a forma definia-se em qualquer coisa reconhecível. Tinha de respirar depressa e voltar a mergulhar, queria, tinha de ver o que era.
O chamamento era tudo, maior que o mar, maior que a vida. Nenhum pensamento de sobrevivência lhe assomou à cabeça, tudo se tornara secundário àquele ser, àquele momento, àquela revelação. Mas seria uma alucinação? Seria possível, um homem ali, vindo directamente do mar? Não podia ser, é que nem sequer era na realidade um homem, tinha cara de homem, olhos de homem, mãos de homem… as pernas eram uma cauda de peixe, brilhante e escamosa. Bizarra imagem, pensou ela e não queria acreditar.
Tentou rir e subitamente lembrou-se que já não tinha ar, havia-se esquecido de respirar perante tal… o que era aquilo? Uma alucinação, uma sereia-macho? Uma sereia-homem. Isso existia? Estaria louca? Uma quantidade abismal de perguntas enchiam-lhe a mente. A cada vez maior proximidade dele clareou-lhe os pensamentos e o espírito, nada interessava. Acontecesse o que acontecesse, estava ali, era o aqui e agora. A admiração por aquele ser que se lhe apresentava à frente gravava-lhe na memória como na alma tudo o que estava a acontecer. Nadaram juntos, o olhar interrogava, o olhar falava. Os seus músculos gritavam que voltasse à realidade de mamífero que era para se alimentarem de oxigénio. Era imperativo respirar. O tempo fugia e não coincidia com o tempo psicológico. Sentia-se criança, sem medos, sem complexos e obrigações. À beira dele estava bem e quase nem precisava de respirar.
A dada altura pararam frente a frente e olharam-se bem dentro nos olhos. Pareciam conhecer-se desde sempre. Foi aí que ela reparou num pequeno apêndice que saía do meio das escamas, pequeno e transparente, como um tentáculo de anémona… Pela primeira vez tocaram-se, ou melhor, ele tocou nela. Um choque terrível percorreu-lhe o corpo, todas as terminações nervosas responderam contorcendo-se, os olhos cerraram-se, os dentes e os lábios também e abriram-se num grito surdo. A água invadiu-lhe os pulmões, a dor era insuportável… e passou. Tentando acalmar-se e retomar o ritmo cardíaco, sem saber o que pensar, olhou as suas mãos e corpo. Já não precisava de subir à superfície, a água tornou-se o seu elemento… deu a mão à sereia-homem e foi, perdeu-se no azul das águas, juntou as suas histórias ao mar.
Estremunhada, despertou-se sorrindo, calma. Durante todo o dia sonhou acordada. Todos lhe perguntavam o que estava a acontecer com ela, que lhes parecia diferente, mais luminosa, viva, estranha. Ela apenas esperava que terminasse o dia para voltar à sua vida onde se transformava numa sereia e ia nadando pelo mar adentro, à procura de novas aventuras e lugares para viver.
Nunca contou o seu segredo a ninguém, tinha medo que se desfizesse como a espuma das ondas na areia ou perdesse o brilho, mas todos os dias lá voltava…