Gaia (Adoa Coelho)

Gaia é a personificação do antigo poder matriarcal das antigas culturas Indo-Européias. É a Grande Mãe que dá e tira, que nutre e depois devora os próprios filhos após sua morte. É a força elementar que dá sustento e possibilita a ordem do mundo. Nos mitos gregos, os conflitos entre Gaia e as divindades masculinas representam a ascensão do poder patriarcal e da sociedade grega sobre os povos pré-existentes.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

As chaves

Tilintam. Sabem ao que vão.
Soam ansiosas. Os olhos confirmam o caminho. As chaves também. Tilintam. Preparam-se.

Cada passo tling, depois tlang. Depois tic, depois tac.
Irritantemente metal.

Depois o coração, a pouco e pouco comuta o marca-passos. A respiração acompanha. Pesa nas escadas, em cada degrau.

tic, tac tling, tlang.
Automático.
Irritantemente frio.

Não há voltar atrás. São as chaves que o dizem. São as mestras que ditam onde estou, onde vou.
A cabeça ficou no ontem. Recusa-se a avançar. A aceitar o ali, aqui. Quer voltar e não pode.
 - Não é possível. Fizeste uma escolha!

tling, tlang... tic, tac

As pontas dos dedos lembram-se, ao percorrer cada chave, qual a que vai selar o futuro próximo. Os dias e meses próximos.
- Não há outra maneira?
- Para já não.
O diálogo surdo da mente continua, cego às escadas.

tic, tac
Irritantemente real.

As chaves caem. Os dedos na última tentativa de resistir à realidade...

tic, depois tac...
tic, tac

O tling e tlang atados nos dedos. Sabem que de seguida se soltarão. Não têm que fazer nada. Há uma rotina. Uma chave apenas que avança. Polegar e indicador conhecem-na. Apontam-na. Ah! Espada ingrata. Vais directa à fechadura. 

Não entres!
Não!

A ferida aceita a espada. E não é ela que sangra...
A porta abre-se. As chaves tilintam mais uma vez agora abandonadas no seu crime... Entro. Os rostos reencontram-se. Os olhos reconhecem-se. Um sorriso forma-se em cada lábio para se encontrarem.

tic...

O tempo não pára. Param os desejos que ficam por atrás da porta. Lá fora. E dentro, fica a realidade. Assim.

tac...


terça-feira, 25 de outubro de 2011

Tento adormecer e não consigo.


Trabalho de Ilaria Margutti


Sinto os pés e os pensamentos, antagonistas em si, no calor e na falta deste, nos sentimentos que provocam.
Busco a mão. Aquela mão que desde há anos me aquece de calor corpóreo e, não sendo ela toda um corpo, aquele corpo que dorme a meu lado, aquece-me por emprestar-se.

Pela primeira vez noto que existe mais ali que uma mão – objecto fechado em si, botão protector do que poderia conter, agarrar – eu, mas não agarra. Não, é mais que isso. É um coração em si. Quenta, pulsa, toma conta da consciência que se diz minha. Emana calor humano que, talvez por inveja, faz com que o meu coração, esse sim, talvez, verdadeiro, bata mais forte e por, sim, inveja, sim, se faça ouvir agora, forte.

Os pensamentos esqueceram-se-se por fim, tal como o sono. Apenas o calor se espraia juntamente com a vontade de escrever finalmente concretizada depois de dias a adiar a verdade.

Sim. Digo adiar a verdade porque é só o que sei escrever (excepto quando escrevo mentiras para me enganar – e conheço-as todas!). Tudo o que vem do coração – aquele de dentro do peito – só pode ser verdadeiro mesmo que doa.

A mente, im-explicitamente, mente. 

Deixo a mão emprestada, qual peluche caído dos braços de uma criança. Deixo-a abandonada e levanto-me.
Sinto-me egoísta. Que sinto eu?

Agora que a mão fez o seu dever de aquecer, ficou no destino que é seu. Abandono? Voltou a mão?
Poderá um dia essa mão, delicada e quente, perdoar este abandono? A troca?

Mas pergunto: a mão que não agarra é mão?

Só posso escrever a verdade...