Gaia (Adoa Coelho)

Gaia é a personificação do antigo poder matriarcal das antigas culturas Indo-Européias. É a Grande Mãe que dá e tira, que nutre e depois devora os próprios filhos após sua morte. É a força elementar que dá sustento e possibilita a ordem do mundo. Nos mitos gregos, os conflitos entre Gaia e as divindades masculinas representam a ascensão do poder patriarcal e da sociedade grega sobre os povos pré-existentes.

domingo, 2 de janeiro de 2011

O Cálice da Vingança - Parte 3/7

O sucesso e a pequena fortuna acumulados em poucos anos de cidade, chamaram a atenção para a sua pessoa. Os homens apontavam as mulheres, mas eram eles que mais cuscavam, ali e arredores. Sendo-lhes favorável, não tinham pudor algum em iniciar rumores ou intrigas. No fundo, eram mais parecidos com os piratas do que gostavam de pensar. Só que os piratas éram-no abertamente. 

E os rumores diziam que o Pirata Gagueiro usava qualquer coisa, magia negra. Sabiam que ele apenas bebia daquele cálice estranho. Não deixava ninguém aproximar-se dele e se lhe perguntavam, agia com estranheza. Tornava-se esquivo e agressivo. Era sabido que ele tinha as suas manias. Apesar de se vestir segundo a moda na cidade, continuava a usar aquele chapéu de pirata – Um pirata sem o seu chapéu, é apenas meio pirata! – Berrava. Digamos que tinha umas arestas a limar... Mas a curiosidade de quem anseia pelo poder, não tem limites e a corrupção entre os homens do pirata político era gritante. Todos tentavam saber os truques mais ocultos, Gagueiro não se descosia nem para os dele. 

Vários políticos davam-se com o pirata e Braguinha era um deles. Homem de maneiras aprendidas e ambicioso, com tal identificava-se com Gagueiro. Elegante, a cara desenhava o contorno do instrumento musical que lhe dava o nome. Eram colegas de algumas aventuras menos políticas e menos morais. Um com o outro aprendiam, cada qual a especialidade do amigo. Braguinha requeria sempre o companheiro para seu padrinho de desafios. Aprenderam a defender-se um ao outro e a retirar daí todas as vantagens. Faziam quase tudo juntos, excepto as actividades mais íntimas de qualquer casal, porque ambos eram muito machos. E divertiam-se muito sempre que percorriam os bares na noite. Bebiam e comiam interminavelmente. O pirata, já sabido das lides de beber, deixava o amigo tomar-lhe a dianteira para lhe puxar pelos segredos que, já sem defesa, desbobinava alegremente. Só depois relaxava, o pirata Gagueiro, e bebia finalmente do seu adorado cálice.

O cálice... continuava a sua estratégia. Este apercebeu-se da contínua aproximação do Braguinha e estava resolvido a finalmente dar mais passos no seu plano.
Cara de Cepo chegara à cidade. Procurou pelos bares onde encontrar aquele que, segundo os pensamentos afluentes na sua árdega mente desde que vira o maldito cartaz, se tornou o seu inimigo. mortal. Sentava-se nos cantos mais escuros de cada bar e sondava. Tornara-se bastante insidioso. Totalmente vestido de negro, ninguém o reconhecia à primeira vista. Foi assim que logrou encontrar o político pirata. Alguém avistara-o naquele bar e Cara de Cepo correu ao seu encontro. Entrou e esperou que ele e o colega saíssem. Não tardou muito.

A ronda da noite ainda ía a meio. Cantavam os dois embriagados. Cepo saltava de sombra em sombra. Desde o momento em que chegaria à cidade, não tocaria numa gota de rum – prometeu-se. Mas sentia-lhe a falta. Tragava um pequeno gole, o suficiente para aguentar mais um pouco. Mas esses espaços de tempo entre goles tornavam-no mais ansioso e bebia o próximo gole com maior avidez que o anterior. Bebia o rum conforme a sede de raiva e acabava por deitar tudo a perder. Não conseguia terminar o plano. Ou porque havia muita gente nas ruas ou porque se descuidava e caía para a luz tornando-se visível a todas as almas. Outra noite em que o Cálice lhe fugia das mãos. – Amanhã, não escapas! – Tecia, faz algumas noites já.


Mas planos, todos fazem e Braguinha, que nada tinha de inocente apesar de fraco bebedor, também fazia os seus. A noite seguinte foi de borga como hábito. Igualmente beberam juntos para acompanhar a bebida. Braguinha, que tinha por mau costume comer e falar com a boca cheia, salpicava Gagueiro com pedaços meio mastigados, salivados, do seu porco assado. Gagueiro fazia o que podia para se esquivar. O truque, aprendera-o Braguinha nas noites anteriores. Apenas quando o pirata estava sóbrio, é que se desviava dos perdigotos. Não lhe fora fácil, mas forjara as últimas bebedeiras. Entre gargalhadas e piadas e apalpanços às moçoilas que lhes traziam as bebidas, conseguia verter para o chão e para as pessoas ao seu redor grande parte do que deveria consumir com o subir das taças no ar e o tchim tchim típico de quem tem muito a celebrar, outra parte ensopava nas roupas ao deixar a bebida escorrer pelo canto da boca. Ao fim da noite tão-pouco importava o quão molhado estava, a mistura do rum com o suor estagnava o ar, mas parece que os alcoolizados a dada altura, perdem a agudeza de alguns dos seus sentidos...

Alheio a estes planos, Cepo fazia mais uma tentativa de recuperar o que fora anteriormente seu. A perseguição voltara às ruas. Desta vez não podia beber, não, não podia. Tinha de se concentrar. Tudo corria bem. Até as sombras pareciam ajudar de grandes que estavam. Olhou para as lamparinas dos postes, estavam muitas delas apagadas. Havia um par de ruas que se encontravam parcialmente às escuras. Fazia noite de breu. Cepo quase temeu. Qualquer coisa poderia acontecer em ruas destas, no entanto sentiu-se encorajado e protegido pela noite. Ía ser agora, sabía-o!

Aproximou-se por trás dos dois homens.
- Quem está aí? – Perguntou Gagueiro meio agressivo, meio borracho.
- Os cavalheiros podiam dar-me uma moedinha para juntar umas batatas à sopa dos meus filhinhos? – Perguntou insinuado, passando-se por menor do que na realidade era, Cara de Cepo.
- Ah! Vá trabalhar homem! – Respondeu o político com maus modos e voltou ao caminho.
O companheiro riu. Ambos riram. Nem foi pela situação do pedinte, mas pela palavra “Cavalheiros”. Eles sabiam que não o eram de todo, embora o aparentassem. Viviam às custas do povo, mas para seu abono. As acções que faziam eram apenas propaganda para angariar votos – primeira lição aprendida por Gagueiro e que decididamente o conquistou para a política.

- Por favor, apenas uma moedinha! – Insistiu o homem.

Ambos os políticos se viraram e Gagueiro, que não gostava de ser contrariado ou de dizer a mesma coisa várias vezes, aproximou-se ligeiro de passos pesados. Desembainhava a espada entretanto, com a ideia de intimidar o pedinte. Quando apenas um passo o separava do homem, sentiu o frio que o atingiu abrupto e sem aviso percorreu o corpo num arrepio. Tinha um objecto metálico, cortante e gelado encostado à garganta que lhe cortou as palavras que se preparava para vociferar. Seguiu o metal frio até encontrar a mão que o empunhava. A espada era pouco usada, via-se. Na pouca luz possível que lhes chegava da lua que começava a crescer, viu reflectida na lâmina o rosto de quem não desejava jamais reencontrar. – Tu!
Cara de Cepo não esperou mais. Sabia que a surpresa era sua aliada.

Lá atrás, Braguinha não compreendia o que se passava. Tentava espreitar o que acontecia, sem resultado. Enquanto o pirata caiu no chão, Cara de Cepo fez uma busca rápida entre as roupas e fugiu.
Braguinha, alarmado, após hesitar uns instantes, correu ao encontro do colega, mas era tarde demais... Apenas ouvira – Tu! 

Deixou-se ficar junto ao corpo. O que passara, nada de novo naqueles tempos ou cidade, estava claro. Remexeu também ele as roupas do morto e ao retirar as mãos vazias gritou – Acudam! Ladrão! Assassino!
Cepo já estava longe. Parou quando chegou ao quarto alugado temporariamente. Regozijou-se apertando o tesouro querido contra si. Era tempo de o voltar a ver. Desembrulhou-o do pano em que o pirata político o protegera sempre e colocou-o contra a luz do candeeiro.



- Gagueiro! Mereces o inferno para onde vais, cão! - De joelhos, Cara de Cepo desesperava. O Cálice não era o seu, mas uma cópia. - Matei-te cedo demais...


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