Gaia (Adoa Coelho)

Gaia é a personificação do antigo poder matriarcal das antigas culturas Indo-Européias. É a Grande Mãe que dá e tira, que nutre e depois devora os próprios filhos após sua morte. É a força elementar que dá sustento e possibilita a ordem do mundo. Nos mitos gregos, os conflitos entre Gaia e as divindades masculinas representam a ascensão do poder patriarcal e da sociedade grega sobre os povos pré-existentes.

domingo, 12 de dezembro de 2010

O Cálice da Vingança - Parte 2/7

Anos passaram e o Pirata Gagueiro subia na vida com segurança. Tinha boa reputação, boa imagem e palavra. A sua influência aumentava no mundo da política e o nome Gagueiro tornava-se cada vez mais famoso entre os piratas. 

Cara de Cepo mudara para um porto longínquo onde a sua fama ainda não chegara. Sentira-se obrigado a mudar de país, mas como a vida de pirata é mesmo viajar, o contacto com os clientes e amigos... de sempre manteve-se porque eles andavam por todo o lado. Cara de Cepo simplesmente não podia fugir de si próprio por mais que mudasse de cidade. 



O Pirata Tresolho assistia Gagueiro, estava incumbido de fazer passar as suas mensagens, auxiliar nos trabalhos, aconselhar, fazer algum trabalho sujo, etc. Era um homem valoroso e cheio de recursos, o que ajudava a compensar a sua falta de acuidade visual, razão pela qual nascera o nome que lhe atribuíram. Esteve quase para se chamar “Dentes de Alcatrão” não fosse o nome já estar atribuído. Os colegas ainda o incentivaram, propondo ajudá-lo, mas Tresolho acabara por ganhar afecto ao primeiro nome e assim, Gagueiro podia gozar do voto de mais um eleitor porque as eleições estavam à porta.

A aproximação de eleições acarretava o remexer em muitas amizades, mais especificamente, a colecta de favores. Uma vez pirata, sempre pirata... Foi desta maneira que os cartazes do Pirata Gagueiro chegaram ao bar do Cara de Cepo. Um dos clientes a serviço do agora político, pediu-lhe para colocar a publicidade numa das paredes. Qual não foi o espanto quando este se deparou com a cara que figurava no cartaz. Tal como os amigos, também as notícias mantiveram-se em contacto, embora não da vida da política. Pirata que é pirata não perde muito tempo nesses assuntos - não trazem lucro imediato. Só que pirata a sério não tem verdadeiramente amigos, porque a procura de tesouros e ouro fácil, levava-os à traição até das mães. Até aí chegava a honra entre piratas, mas apenas.

Cara de Cepo acedeu ao pedido. – Mas que é feito do Gagueiro? Nunca mais lhe pus as vistas em cima!
- Decidiu-se pela política e parece ter grande futuro.
- Não acredito! Então foi ele que criou o nosso partido?
- Pois foi.
- Olha, olha! Já o estou a imaginar, no parlamento, a gaguejar nos discursos! – Cara de Cepo ria-se desbaratado, embora a cara quase não mexesse músculo. O riso era tão aguacento, que o homem em frente viu-se forçado a limpar a cara dos perdigotos.

- Qual quê! Ele fala como um doutor daqueles que estudou muitos anos!
- Não! Como pode ser?
- Os boatos dizem que ele tem um segredo qualquer, mas ninguém tem a certeza. Fala-se num cálice desaparecido...
- O cálice? – Cara de Cepo ficou esbaforido. Virou costas e desapareceu a resmungar alto.



Quando Cara de Cepo voltou ao balcão do bar, encontrou o cartaz pendurado na parede. Retorceu os lábios de raiva. Os olhos quase saíram de órbita, negros e aterradores. Mais tarde, ao voltar para o quarto que mantinha nas redondezas, passou pelos postes de iluminação raquíticos, com o petróleo apagado há horas, o sol bailava já no céu. Cada poste sustinha um cartaz e cara neles impressa ria. Ria às gargalhadas e a imaginação dele podia ouvi-las. Faziam pouco dele. Retirou o facalhão do cinto e cortou lascas na madeira exactamente em cima dos cartazes. Estava decidido, iria regressar e procurar o Pirata Gagueiro. Estava com muita sede e esta era de vingança. 

O Pirata Gagueiro andava muito ocupado. Nunca havia imaginado que as eleições lhe pudessem dar tanto trabalho, mas estava decidido a ir em frente. Sentia falta de pertencer à tripulação de um navio, do companheirismo, de empenhar a espada sem receio de lhe apontarem o dedo ou uma arma. Na cidade só se podia desembainhar uma espada para defender a honra, se bem que se pudesse usar esse argumento para variadas situações, a preferência dos gentlemen que ele desafiava, ia para as armas de fogo e como o desafiado é que escolhia... Ora, para um pirata com saudades do combate corpo a corpo, isso era demasiado impessoal, já para não dizer, fácil. Virar-se e disparar antes do adversário, para terminar o combate com vida, era um dos truques do Pirata Gagueiro. E como o morto já não podia reclamar, o seu padrinho de duelo tão-pouco ia arriscar a pele por um defunto, ficava tudo por ali. A certa altura o pirata deixou de ter pessoas a fazerem-lhe frente, começaram a evitá-lo. A reputação a decair, a imagem a alterar-se. Às vezes ele não conseguia compreender as pessoas da cidade...