Às vezes gostaria de apenas
esquecer-me de quem sou. É um grande passo para cada pessoa - esquecer todas as
histórias que nos construíram até agora e viver cada minuto como o primeiro.
Claro que teria os inconvenientes da lógica. Esquecer de como se lê ou escreve,
por exemplo, ou esquecer os nossos pais. Mas não é disso que se trata, não é de
Alzeimer que falo. É mesmo de deixar as histórias que nos massacram de lado.
Retirar a sabedoria delas, aprender, construir os tais degraus com elas e
seguir em frente. É disto que falo. Para conseguir isto é preciso muito
trabalho, é preciso olhar-nos nos olhos e ver a nossa alma despida sem matizes
para disfarçar. É ter a coragem de sangrar, de estarmos nus perante nós mesmos para nos darmos um bom banho de realidade. Não adianta esconder quem somos por que
há uma parte de nós que a conhece. É acedendo a ela que nos tornamos quem
somos. É acedendo a ela que deixamos a nossa luz brilhar sem vergonha, sem medo
de transpirar luz, sem medo de sermos grandes e lindos e maravilhosos. É disto
que falo. A nossa nudez provém das histórias despidas.
Comecei este processo há três
anos e nunca mais o poderei deixar. Para dizer a verdade última, comecei este
processo desde que nasci. Não será por acaso que me lembro de coisas que
aconteceram quando ainda tinha dois e quatro anos. São muitas histórias
acumuladas, muitas malas de memórias que parecem não ter fim ou solução. Peguem
num puzzle de 10 mil milhões de peças e levem-no às costas. Cada peça é uma
história na nossa vida desde que nascemos, mas estas são apenas aquelas das
quais nos recordamos. Cada história pesa em cada situação que vivemos no
presente, por isso andamos carregados com elas - porque pensamos que elas nos
vão ajudar a perceber quem somos.
Para além de serem um peso morto,
elas (na maioria das vezes) apenas nos atrasam a ver e a fazer o que desejamos
- a nossa luz. Usámo-las como desculpas, como verdades últimas de quem somos, de como o Mundo nos tratou e vai tratando. Uma grande ilusão. As histórias
mostram-nos sim quem somos, mas é preciso olhar para elas sem vergonha e ver
tudo, mesmo aquilo que mais nos magoou sem óculos coloridos para nos desviar
das lições e do ouro real que as histórias nos dão. Cada uma dessas histórias
de dor realizam parte essencial de nós e só desaparece quando descobrimos o
ouro que estava por detrás. É assim que nos livramos desse peso morto. Mas por
vezes este peso nem é morto. Não o é na medida em que vivemos nesse passado e
nos perdemos nele como se o vivêssemos agora. Quantas vezes não ficamos
assustados e com o coração a bater desenfreadamente quando nos lembramos de
parte delas? Quantas vezes não reavivamos as nossas raivas e medos?
Pois esta é uma das maneiras de
vivermos o passado e de o usarmos para impedir uma boa-aventurança no chamado
"futuro". Tomamos decisões pondo todo o peso no passado esquecendo
que há mais respostas, mais caminhos do que aqueles que já percorremos e nos
magoaram. Mas continuamos nesses caminhos porque são aqueles que conhecemos e
temos medo de trilhar outros, ou até de desbravar novo terreno porque sempre
nos ensinaram que devemos desconfiar de desconhecidos. Aplicamos esta regra a
tudo, a caminhos também.
Em vez de crescer para nos
tornarmos em quem nascemos para ser - seres plenos e adultos - continuamos a
ser crianças assustadas e cheias de medo. Usamos os telejornais para nos
mantermos neste filme diminuído e que também nos diminui. Quem liga o
televisor? Quem escolhe esta formatação? Quem escolhe?
Fui sempre eu. Sou eu quem tem
medo de ser diferente da "norma" e esqueço que norma só o é porque
foi instituída pela maioria. Ao lado existe toda uma enorme gama de desvios, de
outras realidades que por fugirem ao que uns chamam de "norma" têm de
ser tratados. Nas escolas, as crianças têm medo de ser quem são para não serem
vítimas de bullying, nos trabalhos temos de vestir e fazer o que nos mandam ou
somos marginalizados e despedidos.
Crescemos para servir outros e
esquecemos que a nossa grande vocação vem de nos servir a nós. Quando eu sei o
que quero não posso nunca ser usada para servir os demais, só me poderei ter a
mim como mestre. Sigo-me a mim e dou-me como exemplo para quem quiser. Sou
exemplo apenas de mim própria, só respondo por mim. Pelos outros, cada qual que
se responsabilize. Sejam responsáveis pelas vossas histórias, irão descobrir
que são responsáveis pelas vossas vidas e pela vossa luz. Só serão infelizes se
o desejarem, não há ninguém a quem colocar as culpas, não é culpa de ninguém.
Foi assim a construção da nossa vida, do nosso lar. Não culpem ninguém e serão
capazes de reaver a vossa vida como algo que só a vós corresponde a sua
continuação. Escolham o vosso caminho, a vossa alegria, a vossa virtude. Façam
este caminho por vocês, não peçam a ninguém para fazer as vossas escolhas. No
fim, serão só vocês quem vai responder elas. A conta final será sempre
apresentada a cada um de nós. Para quê mais desculpas? Desculpas para nos
livrarmos de tomar o nosso poder de volta! E quem damos esse poder? A quem?
Pois a quem tememos não nos deixe viver. Quem é que não nos deixou viver? Nós.
Quem deu o poder para fazer isso? Nós. Somos sempre nós.