Gaia (Adoa Coelho)

Gaia é a personificação do antigo poder matriarcal das antigas culturas Indo-Européias. É a Grande Mãe que dá e tira, que nutre e depois devora os próprios filhos após sua morte. É a força elementar que dá sustento e possibilita a ordem do mundo. Nos mitos gregos, os conflitos entre Gaia e as divindades masculinas representam a ascensão do poder patriarcal e da sociedade grega sobre os povos pré-existentes.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

O Cálice da Vingança - Parte 4/7


Braguinha temia que algo acontecesse, que alguém tentasse roubar o cálice. Ele sabia que não era o único a cobiçar o malfadado objecto. Via-o no olhar de todos quantos se acercavam do Pirata. Via-o como se nele próprio encontrasse a verdade daqueles homens. Via-se. Por isso sabia que devia ser astuto e rápido. Criou um plano. Insatisfeito e receoso, criou outro plano. E para não ser surpreendido por algum imprevisto, ainda se assegurou, atestou, certificou, confirmou com ameaças aqueles que comprou, para cumprirem o seu trabalho. O silêncio dos seus actos guardou-o para si. Nem com a jovem com quem trocava privadamente suspiros ardorosos e palavras engatadoras e indaganços fisiológicos, desabafou.


A primeira parte do plano foi relativamente fácil de conseguir. A confiança, se bem que limitada que o Pirata Gagueiro tinha com ele, proporcionara oportunidades que a mais ninguém se apresentara. O simples acesso aos aposentos do pirata político fora crucial. Aproveitando um descuido, Braguinha aproveitara a oportunidade para conseguir uma impressão do cálice num pedaço de barro que o artesão, encarregue de fazer a cópia, lhe dera.


O artesão fora, algumas poucas vezes, companheiro de aventuras nocturnas dos dois amigos. Tudo com o intuito de observar bem a peça para que não houvesse erros de maior, pelo menos visualmente. Feita a cópia, teriam de actuar o mais rápido possível. Depois de trocar os cálices, seria uma questão de tempo até que a troca fosse notada. A noite do assassinato fora por coincidência, também a noite da permuta. A ideia do homicídio não fora dele, não daquela forma... a arma que iria usar dar-lhe-ia contornos mais civilizados. Queria encenar um roubo. O verdadeiro furto havia acontecido ainda em casa do pirata. As ruas escuras dariam a cobertura necessária ao suposto ladrão-assassino e o cálice agora extraviado, o falso, serviria de engodo para desviar as atenções para si próprio. Aquele personagem saído das sombras, fora um bónus. Fez o serviço e nem precisaria de lhe pagar. Ah! Tudo corria bem! Muito bem!


Cara de Cepo chegara a outro impasse. Sentia-se perdido, exactamente como logo a seguir a terem-lhe roubado a jóia. Pensava e repensava em quem teria a peça e na realidade, podia ser qualquer pessoa. Talvez alguém chegado ao Gagueiro o tivesse feito. Talvez aquele político que estava persistentemente com ele? Provavelmente ele saberia de alguma coisa, mas como perguntar por assunto tão distinto sem levantar suspeitas sobre si? Decidiu pesquisar por duas vias – o político que estava com o pirata na altura do assassinato e o vendedor a quem havia comprado o cálice. Ele ainda se perguntava que havia naquele cálice que o fazia tão especial. Quem o teria feito. E que artes usara? Cepo mantinha uma ligação ao objecto que lhe era difícil explicar. Tão-pouco tentara comentar com vivalma. 

O pirata tinha uma vida bastante ocupada pelo bar, restando-lhe pouquíssimo tempo para confraternizar fora do local de trabalho. Aliás, nem precisava, já confraternizava lá o suficiente. Dava graças por ter um bar onde todos os clientes eram piratas. Ninguém mais se atrevia a colocar ali os pés, excepto alguma mulher obstinada por levar mais umas moedas para alimentar a prole ou divertimento remunerado. Era sabido que esta clientela gostava era mesmo de beber e pândega, e não tinha muita propensão a desabafos vindos do mais profundo da alma. Nem os piratas tinham alma. Vendiam-na à primeira oportunidade quase sem regatear preço.

Com essas primeiras moedas pagavam a entrada no mundo da pirataria. Porque nem sempre era vocação familiar, por vezes necessitavam comprar um lugar num corsário, mesmo que fosse para lavar o convés. Certas mães tentavam por tudo que os filhos seguissem outros caminhos na vida, mas o mar enfeitiçava-os. Fugir das saias da mãe também. A promessa de aventura, tesouros e mulheres em cada porto, apelava aos jovens que, à falta de melhor perigo, enveredavam pela fantasia e promessa de governar os mares salgados, solitários e amargos – coisa que só muito mais tarde compreendiam. Assim aprendiam o mundo e se tornavam tão duros como a vida que levavam. Porém amavam tanto essa vida, que se o mar lhes faltasse, secavam-se-lhes as veias e tremiam, qual bêbedo à espera da primeira rodada após o descanso forçado do sono ressacado.

Cepo ganhara uma nova vontade de viver ao descobrir sobre quem, por direito, se vingar. Achava estranho agora que de novo havia perdido o paradeiro do copo, essa mesma vontade se reafirmar. Nunca fora tão viciado por algo como pelo cálice. Nem mesmo pelo mar que chegara a percorrer em tempos desaparecidos da memória com a ajuda do álcool. Descobrira que a melhor maneira de curar um vício, seria substituí-lo por outro. Desta vez, desejava banquetear-se nessa dependência, nessa lama. Há qualquer coisa intrínseca no ser humano que o chama para o cataclismo ainda que saiba racionalmente que é má, muito má ideia - o desejo do abismo consegue então, ser o ar que o alimenta.

Braguinha fez-se muito caseiro por uns dias. Queria experimentar o cálice no sossego da refeição caseira que conseguira que a rapariga lhe preparasse. Não devia ser visto em posse do objecto furtado. A forca não estava dentro dos planos para si traçados. Não! Queria bem o contrário. Um alto cargo no governo seria satisfatório para já. Não ficaria por aí, mas sabia que toda a ascenção é feita no decorrer do tempo. Teria de ser paciente ou então... fazer um outro plano, desta vez com outros propósitos – Será que o poder do cálice chega para me fazer presidente? – Estava disposto a fazer com que a resposta fosse positiva. Olhava o copo e a sede de poder tornava-se insuportável. Chamava-o. Às vezes quase duvidava quem na verdade havia feito os planos. Às vezes, aquando sentado ao lado do pirata enquanto ele usava o cálice, sentira-se fora de si, levado por pensamentos que nunca ousara antes. Simplesmente por olhá-lo, tinha provocado efeito em si e cedera-lhe. Perguntava-se se aquele objecto estava realmente enfeitiçado. Ah... mas que prazer deixar-se enfeitiçar por ele... O cálice ainda apenas entrara na vida do homem e já o apagava em desejos para além do copo em si. Estava na hora de o apreciar.


Era um momento solene. A respiração fugia-lhe. As mãos tremiam-lhe mas agarravam firmes, o cálice. Estava arrebatado. Tentava controlar-se. A cabeça viajava à velocidade do futuro mais longínquo. Já se via presidente, a falar para o povo que o ouvia submisso. Sacudia-a, a cabeça. – Mantém-te atinado. Ainda falta muito para lá chegares... – Destapou finalmente o cálice e arregalou os olhos. O que beberia? Pousou o cálice na mesa após o observar com cuidado. Sentiu-se perdido no quarto. O que iria beber? Bom, o que tinha, excepto água. A água enjoava-o, como se o ajudasse a re-saborear o hálito constante da boca meio imunda. Encontrou uma garrafa entre os papéis, livros e lixo da sala. Antes de entornar o conteúdo da garrafa, cheirou o cálice. Meteu o nariz lá dentro. Fechou os olhos. Deleitou-se. Hum... Se antes de o utilizar já estava em êxtase, depois de beber... – O que será me que vai acontecer? – Perguntava-se inseguro. – Não me vai matar pois não? – Hum... – Já chegaste até aqui, não vais ficar pelo meio, pois não? – Quando se sentia inseguro, tinha por costume falar para si na terceira pessoa acabando por chegar a consenso, mais tarde ou mais cedo. Precisava de se convencer. Estreou o cálice com o suco alcoólico, fez o líquido percorrer as suas paredes cristalinas. Saboreava cada micro-segundo. Sabia que a sua vida estava prestes a mudar. Sabia-o. Levou a taça à boca como quem reza, primeiro elevando-a, depois, levando-a aos lábios secos, ávidos daquele néctar desconhecido.


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