- Bom dia.
- Bom dia. Em que lhe posso ser útil?
- Poderia vossa excelência chamar o artesão Chaves?
- Lamento muito, mas ele não se encontra aqui, de momento. Posso ajudá-lo?
- Precisava muito falar com ele. Quando volta?
- Ele deixou-me encarregue da loja, sou o primo. Ele não disse quando voltaria. Pode adiantar o assunto? Quem sabe posso ajudar.
- É por causa de um cálice...
- Hum... – O homem à frente da loja mostrou-se pensativo. – Mas... aconteceu algo? Partiu?...
- Não sei. Funcionava bem até hoje bem cedo.
- Como?
Satisfeito com o rumo que a sua vida tomava, Braguinha travava amizade com os políticos mais influentes de Portugal, seu país. Sonhava já com o posto mais alto na política. Quiçá chegaria a ser conselheiro do rei, quiçá, com este rei deposto...
Depressa se habituara aos olhares concentrados em si, à atenção desmedida pelos colegas de tribuna. Em apenas três dias evoluíra tanto que as mudanças pareciam ter meses, mesmo anos. – Bendito cálice – repetia para com os botões ao levantar-se pela manhã, saboreando o doce destino que profetizava.
Neste dia saiu à rua e foi atacado pelo cheiro agreste do lixo, águas paradas e dejectos humanos. Ao passar pelo mercado, foi abruptamente saudado pelo conteúdo do balde da peixeira, que atirava águas de limpar a mercadoria no bueiro mais próximo, que se encontrava exactamente a seguir ao espaço corporal do político. Chegado ao parlamento, o porteiro pediu-lhe as credenciais, deixara de o reconhecer. Os colegas nem o viram. – Que estranho! Toda a cidade fede como antes. Ninguém me trata bem... – Resolveu voltar atrás. Mal o fez, recebeu o brinde do dia (até ali...) – a rapariga com quem andava engraçado, embrulhava-se nos braços de um qualquer homem, na rua e nem ele o conhecia!
- Vou tirar isto a limpo! – Foi a correr para casa. Voltou a beber do cálice. Era o mesmo copo de onde tinha bebido todos os aqueles dias. Mas já não funcionava. Porquê? O copista havia de ter uma resposta. Ou fora roubado durante a noite ou muito bem enganado. Mas como? A rapariga? Não! Ela era demasiado ignorante para perceber o que fosse. Nem teria coragem para lhe aparecer à frente fosse esse o caso... Não, isto era obra do artesão. Só podia ser...
- Talvez se formos para dentro, possamos falar à vontade... – Falou o primo do mestre vidreiro. – Faça o favor de me seguir.
- Certamente senhor...? Enquanto caminhavam, Braguinha tropeçou num caco de vidro.
- Não ligue. Por vezes acontecem acidentes por aqui. Sabe como são os vidros... Cepo.
- Desculpe?
- Ah... Não compreendeu... Vossa senhoria pode tratar-me por Cepo.
- Curioso nome! – Admirou-se Braguinha. – Afinal onde anda o seu primo?
Cara de Cepo ordenou o mais velho dos ajudantes fechar a loja e subir, juntamente com os restantes miúdos e aguardar novas instruções. Acostumados a obedecer ordens, assim fizeram. – Agora podemos falar à vontade.
- Muito agradecido! Queira compreender sua senhoria que este assunto é verdadeiramente delicado.
- Deveras. – Cara de Cepo certificou-se de que não seriam ouvidos ou interrompidos. – Tem aí o seu cálice?
- Sim. Será que estragou?
- Não acredito. Tem mais alguma cópia?
- Não. Mas há mais cópias?
- Veja sua excelência que o meu primo...
- Não! – O político já adivinhava o que iria ouvir.
- Pois é verdade. Ele fez várias cópias do cálice e quis enganar toda a gente.
- Não!
- Sim! – Cepo aguentava-se. Queria rir. Sentia-se superior. Havia encontrado o verdadeiro cálice, livrou-se do artesão e estava prestes a acabar com o último testemunho dos poderes da taça. Fazia um trabalhinho limpo – tudo para dentro da fornalha, junto com o vidro derretido... – ficava com o negócio dos vidros, os miúdos trabalhariam para ele de graça e ficava sem problemas para a velhice que não tardava em chegar. Que mais poderia querer?
Pegou na cópia do cálice do político e desfê-la contra a parede.
Chocado, Braguinha ficou sem reacção. Apenas seguiu os passos do homem que estava à sua frente. – Então não há hipóteses de reaver o verdadeiro cálice?
- Nenhumas. O meu primo assegurou-se. Como pode ver, tenho aqui mais algumas cópias – mostrou-as – e não têm qualquer valor. – Cepo pegou nelas e também as desfez.
Braguinha ficou desanimado. Tantos planos para nada. Tantas ilusões...
- Mas diga-me. O que fez o cálice por si?
O Político contou-lhe os passados dias. Mostrando-se muito interessado, Cara de Cepo ouviu tudo. Braguinha desabafou e mostrou-se tão desiludido que Cepo achou não ser necessário limpar-lhe os passos.
- Pois, é como vê. O meu primo fugiu para parte incerta com o cálice verdadeiro. Deixou-me aqui com o negócio às costas. Nem sei como vou aguentar isto, sem ele.
- Desejo-lhe sorte meu senhor. – O político não era muito esperto. Os químicos da taça verdadeira que o mestre havia colocado na cópia haviam-lhe transformado a vida. Aderidos com cola de coelho, os componentes generosamente cedidos pelo cálice, foram o bastante para que, juntamente com o poder de sugestão, Braguinha conseguisse temporariamente alcançar os seus desejos. Agora, e sem perspectiva de reaver o querido tesouro que reteve tão pouco tempo, condenou-se a aceitar o novo destino. Cabisbaixo, despediu-se.
Cara de Cepo, mal o homem desaparecera da loja, permitiu-se rir a todo o volume. Encheu a caixa torácica e explodiu-a com prazer. Essa noite iria celebrar com o seu antigo amigo – o Cálice! A sós. Não precisava de mais ninguém. Podia o mundo desistir de durar que lhe bastava o fiel amigo, que agora segurava entre mãos.
- Você! – Ante a surpresa daquela voz, o pirata deu meia volta. – Você tem o Cálice!
Cepo riu ainda mais que os músculos da cara quase se contorceram com o acto. Uma ruga aparecera, rodeando os lábios, fora tudo.
Braguinha, furioso, procurou a arma que estava algures num dos bolsos do casaco comprido que usava.
Cepo, que nunca descuidava da sua Impaciente, chegou-lhe primeiro acariciando o pescoço do político com ela. Bem tinha razão em tratá-la intimamente assim. Sempre que se aproximava do cálice, ficava mais desperto. Notava-o conscientemente. A ligação entre os dois era endémica.
- Você é mesmo primo do artesão? – Perguntou Braguinha desconfiado.
- Oh homem! Com esta espada?
- Foi você quem matou o Gagueiro!
- Ah, ah, ah, ah! Tarde demais para ficar inteligente, não acha? – E com esta última frase, Cepo brindou o adversário com o golpe da paz eterna, para depois reparar. – Bafo de cão! Vou ter de limpar tudo outra vez! – O sangue escorria. Depressa arrastou o corpo para a fornalha. Esperou um pouco antes de chamar os rapazes. Entretanto limpou as marcas líquidas do falecido visitante e disse para se controlar. – Não podes matar todos os clientes que entrarem. Foi o primeiro e o último está bem? Já terminaste com o artesão, agora um cliente. Assim vamos à falência! – Cepo recuperava o riso temporariamente parado. – Quando isto não der mais, acho que podias dedicar-te ao espectáculo!
Havia piratas que aguentavam ouvir as suas histórias continuamente, rir e bater palmas de e a si mesmos. Cara de Cepo era um deles.
Cheio de pompa e circunstância, batia à porta o emissário do rei. – Venho buscar a encomenda para a sua majestade.
O aprendiz mais velho atendeu.
- Onde está o teu mestre? – Ordenou o emissário.
- O mestre não se encontra aqui faz dois dias, mas o primo esteve a trabalhar no cálice toda a noite. Eu não queria incomodá-lo. Deve estar muito cansado. Já o tentei chamar, mas nem se mexe. Até parece morto... Queira perdoa-me, senhor. Eu trago-lhe o cálice.
O rapaz pegou no cálice. Tinha a certeza de que era o certo. Depois de tantas provas que o mestre havia feito, parecera-lhe aquela a melhor das peças. Bom, a única, já que todas as outras haviam sido destruídas. O rapaz tinha orgulho de trabalhar com um mestre tão criterioso e perfeccionista como o que ele tinha. Achou o primo dele meio estranho. Não tinha bem a certeza de ele saber o que fazia, mas ordens eram ordens, e se o mestre tinha dito ao primo para ficar com a loja, quem era ele para duvidar?
O cálice, que aterrorizara as peças todas na loja desde que regressara, estava finalmente feliz. Conseguira vingar-se de todos quantos lhe puseram mão. Estava a caminho do seu destino primordial. Foram precisos anos - não importava. Foram precisos os químicos das suas paredes - tão-pouco importava. Estava a apenas um passo de libertar o que a bolha continha e nem ele próprio sabia. Serviria unicamente uma vez, mas estava orgulhoso. Serviria o rei. A alma que o artesão lhe emprestara para o criar, finalmente seria liberta e juntar-se-ía à que, incompleta, agora a buscava desde que o mestre aspirara pela última vez. Nunca saberia que nele residia a frustração do seu criador de quando se sentia incapaz de perfeição. Por isso era a bolha grosseira, porque o que a preenchia também o era.
Estranhara o artesão que desde aquele cálice, vergonha das suas vergonhas, nunca mais realizara um trabalho com incorrecção. No entanto, era precisamente aquela peça que o perseguia e que por ela viria a morrer.