Gaia (Adoa Coelho)

Gaia é a personificação do antigo poder matriarcal das antigas culturas Indo-Européias. É a Grande Mãe que dá e tira, que nutre e depois devora os próprios filhos após sua morte. É a força elementar que dá sustento e possibilita a ordem do mundo. Nos mitos gregos, os conflitos entre Gaia e as divindades masculinas representam a ascensão do poder patriarcal e da sociedade grega sobre os povos pré-existentes.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

O Cálice da Vingança - Parte 1/7


 


Entre a escuridão da sala, comandava destinos além do seu. Buscava incessante a saída daquele sítio onde viera parar – um bar de piratas. Passava todos os dias por mãos indelicadas, mal-cheirosas e cheias de calos, que tal facto agravava a sua disposição.

-Raios, raios, raios! Sempre a mesma coisa! Mas que raio de vida é esta? Não fui feito para isto!

Os outros, cálices de menor estirpe, segundo ele, ouviam-no em silêncio. Por vezes tinham-lhe medo e por isso deixaram de responder quando ele falava naquele tom – Raios, raios, raios! - Ia ser mais um daqueles dias como aliás, se estava a tornar costume desde que enfiou no seu teimoso cristal colorido e metalizado, a ideia de vingança.
Queixava-se de novo o velho cálice. Não que fosse velho pela idade, fora confeccionado apenas há uns meses, três para ser exacta, mas pela disposição que tinha todas as vezes que se apresentava ao trabalho. – Eu não fui feito para trabalhar como vós! Eu fui criado para me apresentar apenas em cerimónias, em ocasiões especiais. Assim foi traçado o meu destino – com glória! - Ainda não havia começado o dia e já estava cabisbaixo, derrotado, excepto quando pensava no seu plano. - Que futuro tão promissor tinha pela frente. Servir reis e rainhas, a comandar os destinos do mundo... Ah! Mas vocês vão ver! O meu plano é fenomenal! Todos os que beberem de mim vão querer repetir e nem vão perceber o porquê!

Os outros copos entreolhavam-se e como não podiam fazer nada contra ideias tão gabarosas, recolhiam-se ao que ficou imposto ser a sua insignificância. Afinal eles eram apenas feitos de metal esmaltado colorido com incrustações de vidro a imitar os verdadeiros cálices.


 


As primeiras luzes acendiam. Pouco era o tempo de descanso. A vida num bar de piratas não era fácil. Os piratas eram conhecidos pelas suas noites intermináveis, bebedeiras intermináveis e... lutas intermináveis. O cálice estava cansado, mas decidido. Possuía um trunfo que ninguém desconfiava, nem mesmo quem o comprara por uma bagatela, o Pirata Cara de Cepo. Era chamado assim porque quando jovem andara tanto à luta com outros piratas que a cara perdera a capacidade de mostrar expressões. Uma história triste no entanto, já que grande parte das lutas perdeu-as e a sua vida como saqueador dos mares teve pouco êxito. Do que tinha em coragem, pouca, sobrava-lhe em persuasão. Fizera o bar, já que todos os seus conhecidos eram corsários velhacos, visualizou assim maneira de fazer fortuna sem correr tantos riscos. Depois de se apanhar tanto, o que se deseja a certa altura, é descanso. Pagou para que os companheiros divulgassem o bar e prometeu-lhes uma parte nos lucros. Mas ele era tão velhaco que lhes dizia ter dividido as moedas aquando da entrada deles no bar, pelo que também lhes dizia, que gastavam lá todas as moedas ganhas sem nunca lhes ter dado nenhuma. Os companheiros nunca desconfiaram de nada já que todos os dias que por lá passavam gastavam tudo o que tinham e, no fim, já arrastando-se pelas ruas, caídos de bêbados, nunca se poderiam lembrar do que se passara antes. Por vezes, à conta de um olho negro e uns dentes partidos, podiam apenas imaginar como havia sido a noite anterior. 

Homem de negócios cheio de ideias e montes de crenças, Cara de Cepo embarcou num encantamento desde o momento que vira o cálice. Todas as peças do bar apareceram quase como por magia, digamos que por... persuasão... E por isso não tinha duas mesas, dois copos iguais. O cálice fora a única peça realmente comprada e colocada em local de destaque.

O cálice apercebeu-se desde o primeiro momento do destino que lhe estava a traçar o seu dono. Nada do que estava a acontecer-lhe era parte do destino original. O que diriam os seus pais daquilo? Ele, uma peça tão nobre, ali num bar de piratas? – Eles vão ver!... Eu?! A ser vendido dessa maneira e ainda por cima regateado?! Vão ver, vão ver!

Os primeiros piratas a entrar, olhavam para o centro do bar. Lá figurava o cálice. Embora comercialmente não tivesse grande valor, era o seu porte e anterior destino que lhe emprestava a cobiça com que todos o olhavam. – O rum sabe melhor quando bebido pelo cálice - diziam. Todas as noites apenas uma pessoa podia usufruir dele e era precisamente quem tivesse as bolsas mais recheadas. Os piratas chegavam lá a gabar-se dos seus feitos e aquele que mostrasse mais ouro ou prometesse sair de lá com os bolsos mais vazios, bebia do cálice, até ficar de bolsa mais leve. Logo passava a oportunidade a outro.

-E porque foste para uma loja em vez do altar do rei? – Perguntou-lhe uma vez um dos cálices esmaltados.
-Bah! Só porque falhou a mão ao meu criador. Nem se nota nada... – Era esta a grande vergonha e o que desviara o grande cálice do destino para ele fadado. Uma falha que apenas olhos treinados poderiam observar e que certamente naquele bar ninguém notara. Uma bolha no topo do pé do cálice que transformara perfeição em defeito pois estava ligeiramente descentrada. Caso contrário, seria de valor incalculável.
Os copos tinham-lhe medo. Ouviam-no preferir palavras de maldizer e ficavam a imaginar o que seria que passava naquele cálice sedoso de vingança sem se atreverem a perguntar. 

- Afinal qual é o plano? - Este cálice esmaltado era novo naquelas paragens e bastante atrevido, provavelmente fruto da juventude.

Todos ouviam interessados e os que não conseguiam ouvir por estarem longe, esperavam ansiosos o passa palavra sobre o que era dito pelo cálice maldito.

- Sempre que bebem através de mim, libero na bebida parte da minha composição.
- Para quê? – Perguntava o copo imberbe.
- Assim eles ficam viciados em mim. Com certeza já reparaste como todos lutam por me ter nas mãos...
- É por isso?
- Certamente! E a minha imponência, claro!
- Claro... – O jovem quase ria com tanta prepotência. – Mas isso não é perigoso?
- Eles sobreviverão. É só até conseguir sair daqui. Tenho de fazer com que lutem por mim para que um deles me roube e me leve a outras paragens.
- E como sabe, se quem o levar não o vai vender?
- Assim espero! E se não o fizer, há-de ter uma morte terrível.
Um dos copos que se encontrava mais perto, conseguiu chegar-se ao jovem e subtilmente avisá-lo para não continuar a conversa. Puxou-o dali enquanto o cálice continuava a ladainha para consigo.

Nessa mesma noite, os ânimos estavam exaltados, mais do que o costume. Palavra puxa palavra, e porque dois piratas estavam empatados quanto à maquia conquistada nesse dia, não houve decisão clara quanto a quem usaria a relíquia em primeiro lugar. Ambos queriam ter as honras da noite e como nenhum cedeu... navalha puxa navalha.

No meio da confusão um espertalhão aproveitou o facto de todos terem o olhar fixo na luta. Agarrou o prémio e fugiu porta fora. Foi só numa das ruas mais adiante que o ladrão se apercebeu que estava a ser seguido. O medo de ser privado do recente tesouro levou-o a tentar esconder-se o mais depressa possível nos cantos da noite. A perseguição durou. Quem o seguia tinha a alcunha de Pirata Gagueiro devido à sua imperfeição de fala e não desistia nunca do que tinha em mente. Por vezes demorava-se nas sílabas, mas ninguém se atrevia a fazer pouco dele na sua presença, não depois do sangue corrido à sua conta. A fama de persistente acompanhava-o onde quer que fosse e estava claro que ia levar esta tarefa até ao final. Vira o ladrão pegar o cálice desejado no meio da confusão. Ele estava demasiado longe para executar a sua ideia com rapidez suficiente e fora ultrapassado pelo Pirata Fininho, assim chamado com justiça ao corpo delgado que o permitia esquivar-se dos outros durante as lutas e tirar o máximo proveito das situações.


 


Entraram nas mais escuras ruas da cidade, brincaram ao jogo do gato e do rato para no fim, o rato, ser inevitavelmente apanhado.

Ninguém sentiu a sua falta, embora o Cara de Cepo tivesse pena. Gostaria de ele próprio ter feito o serviço. Agora nunca iria descobrir quem tinha o precioso cálice. O bar iria perder clientela e teria de recomeçar tudo noutro porto. Estava arruinado.

A motivação de cada pirata para possuir aquele troféu estava relacionada directamente com as especificidades pessoais e o que objecto em questão podia fazer em cada caso. Quer fosse real ou apenas sugestão, o certo é que todos partilhavam a convicção dos poderes especiais que o cálice lhes transmitia. No caso do Pirata Gagueiro, após beber dali, este podia falar eloquentemente. O sonho de criança voltava após aquele milagre. Se falasse bem, podia mudar de profissão e dedicar-se à política. Estava na hora de criar o tão comentado entre os pares - “Partido dos Piratas”. Esperava-o uma vida fantástica, cheia de poder e dinheiro fácil. Os dias de frio e tempestades no mar com perigo para a sua vida terminaram. 

Começou por comprar roupas melhores, cortar o cabelo, procurar as pessoas certas para o ensinar as coisas da política... Ah! E tomar banho!

(Continuação na próxima semana)
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