- Cof, cof, cof... cof, cof! - Tossiu. Tossiu, recuperou e esperou por uma reacção. Olhou-se de cima a baixo. Nada. – Hum. - Endireitou a coluna vertebral, colocou os ombros para trás, peito para a frente, levantou o queixo. Depois de esconder o cálice, viu-se ao espelho. Voltou a calçar os sapatos e saiu para a rua. Braguinha seguiu até à câmara da cidade onde trabalhava. Subiu as escadas que levavam aos fachada e portão principais. As pessoas haviam-no contemplado já durante o caminho, notara-o. Desviava os olhos para baixo mal reparava no mirar directo das pessoas. Será que haviam descoberto os planos? Parou e voltou para trás. Não queria ser apanhado e preso diante dos colegas parlamentares. Seria uma vergonha enorme e inultrapassável. Pegou num jornal, para tentar descobrir alguma coisa. Deu uma moeda ao ardina e perguntou-lhe, como que desinteressadamente – Há novidades?
- Nenhuma, meu senhor. – Respondeu-lhe o homem com um sorriso. – Quer dizer, o costume da cidade. – Pensou mais um pouco e – Houve um assassinato. Sua senhoria conhecia-o!
- Sim? – Fez-se despercebido. Afinal, fora ele próprio quem gritara por auxílio e assistira a polícia ao indicar o caminho do assassino.
- Era aquele Pirata que sua senhoria acompanhava muitas vezes...
- EU acompanhava-o? – Braguinha bufou desconcertado, carregando propositadamente no “eu”.
O ardina encolheu-se, não se atrevia a responder a um político. Sabia lá o que lhe poderia acontecer. Ainda perdia o seu lugar na praça... ou, sabia lá!
Apesar desta pequena contrariedade, Braguinha sentia-se confiante como nunca. Ah! A cidade tinha outro cheiro. Outras cores. Mais luz. Onde estava o lixo que sempre via em todo o lado? As entranhas de peixe e os esgotos ao ar livre que o repugnavam? Bizarro. Continuavam ali, bem por baixo do seu nariz logo ao sair de casa, mas já não o incomodaram como antes. Teria ficado sem olfacto? Lançou o nariz para o ar. Sentia o cheiro a maresia da qual gostava, a cidade situava-se perto do Oceano, e no entanto... Observava a estrumeira acumulada na feira pelos comerciantes madrugadores e agora não lhe dizia nada. Não lhe revoltava o estômago. Era-lhe quase invisível. Como podia ser? Sendo assim, nem precisaria mais de voltar a beber para aguentar a fetidez. – ‘Co a breca! – Pensava. Estaria torpe? Como, se se achava lúcido? Concentrado? Seria? O mundo decadente em que vivera nos últimos anos estava modificado. Ou era ele quem se modificara? Estranho, muito estranho...
Resolveu-se a entrar finalmente, após vistoriar o jornal e observar os olhos indiscretos que o miravam. Enfrentou-os desta vez. Faziam-lhe vénias à medida que avançava nos corredores ao que ele respondia com semi-vénias e ar desconfiado. Nunca foram tão simpáticos com ele. Aliás, nunca tinham propriamente reparado nele. Sempre se havia sentido como um fantasma a deambular por ali. Até quando caminhava ao lado do Pirata Gagueiro, tinha a impressão de ser e parecer um simples secretário - alguém sem importância, alguém em quem ninguém reparava. Irritado, agarrou na seguinte pessoa que o cumprimentou pela gola do casaco e encostou-a à parede, a poucos centímetros acima do chão, o suficiente para a pessoa ficar em bicos de pés, que ele também não era nenhum valentão.
- Porque estás a olhar tanto para mim? Nunca me viste, foi?
Imediatamente meia dúzia de políticos se aproximaram. Geralmente davam-se diplomaticamente bem, pelo menos sempre que possível. De vez em quando era o “deus me acuda” e o “salve-se quem puder” em plena assembleia.
- Perdoe-me sua excelência, mas... mas a sua elegância e distinção são admiráveis. – Gaguejou o homem.
- O quê? Estás a gozar com a minha cara?
- Não! Garanto! Pergunte a quem desejar – o homem apontou a plateia que comentava baixo, entre si.
- É verdade. – Aproximou-se um homem de abundantes cabelos brancos. – Todos nós estamos admirados pela nobreza de sua excelência. – Concordou fazendo uma vénia.
Braguinha foi obrigado a largar o homem. Todos pareciam concordar entre si, acenando com a cabeça. - Só pode ser acção do cálice! – Pensou e riu de satisfeito. - Afinal funciona!
- Claro, meus excelentíssimos colegas! Afinal nem é como se nos víssemos pela primeira vez... – Disse Braguinha para aliviar a tensão que criara ao agarrar o pobre colega.
Todos ficaram calados. Alguém o vira anteriormente? Se sim, ninguém pareceu recordar-se.
- Gostaria de nos acompanhar, caro...
- Braguinha, sua senhoria...
- ...caro Braguinha?
O político, que sabia muito bem com quem falava acedeu prontamente. O homem grisalho era líder de partido na região. Braguinha não podia deixar escapar a oportunidade de se infiltrar no grupo mais influente daquelas bandas. - Que dia estranho! Seria coincidência ter aparecido este homem precisamente hoje? – Perguntava-se.
Concentrado no trabalho, Chaves, um homem baixo e enxuto, atendia a última cliente do dia quando Cara de Cepo entrou dizendo – Boas noites.
- Boa noite, sua excelência! A quem devo a honra? – Os vidros de todas as cores e feitios alegravam as paredes pontuadas por caleidocópios excêntricos.
Cepo apontou para uma delas. – Costuma fazer peças dessas por encomenda?
- Depende do cliente... e de quanto está disposto a pagar... sim. – Confirmou o vidreiro, aproveitando para verificar se mais alguém entrava, fechando atrás de si a porta da rua. Estranhou ver um pirata na sua loja. Não era, de todo, o estilo de cliente a quem fornecia trabalhos. – Está interessado em alguma peça em particular? – Agitado, um nervoso miudinho começara a aflorar-lhe a pele. O pirata rodopiava incessantemente pela exposição de obras.
- Digamos que numa muito em particular. Uma muito especial.
Chaves sentiu-se amolado. – Lamento, mas peças especiais só mesmo por recomendação de amigos e com garantias. – Desculpou-se decidido a terminar por ali a possível transacção comercial. Tentou mesmo indicar o caminho para a porta da rua dirigindo-se para a dita, embora sem sucesso.
Cepo, que subitamente parou de remoinhar pela loja, enfrentou o homem, falou também com determinação na voz: - Creio que sua excelência é amigo do comerciante ali da esquina, do... como se chamava ele?
- Chamava? – O homem desviou-se ligeiramente para trás.
- Sim, chamava. Parece que teve um pequeno acidente há poucos minutos.
- U.. Um a...a... acidente? – Chaves acentuava agora os passos que dava para trás. Não lhe havia parecido boa ideia a entrada do pirata pela loja dentro e avaliava possíveis formas de defesa. Estava em perigo, sabia-o.
- É, são coisas que acontecem quando se tem de puxar pela memória e ela não coopera...
- É?
O artesão suava, coisa rara para um homem habituado a temperatura elevadas. Cara de Cepo sorria friamente.
- Você como artesão e criador, também deve fazer cópias por encomenda, não?
- Cópias? Eu sou um homem muito sério! Todas as minhas peças são originais! – Tentava defender a sua honra.
- Ah! Quer enganar a quem? Será que temos de fazer exercícios de memória como com o seu amiguinho? – O negrume da alma de Cepo transparecia, como se a sua pele fosse mais translúcida que os cristais que o rodeavam.
- Não, não, não! – O homem gaguejava, transpirava, gotejava palavras e pensamentos. Desmoronava-se.
O pirata, cuidadosamente passava com a espada embainhada demasiado perto dos cristais, deixando um rasto de estilhaços com todas as vogais do abecedário e fazendo soar a melodia mais que uma vez. Cada badalar fazia o artesão pular acima do chão, acima do que alguma vez havia saltado na vida. Estava a chegar à porta do seu atelier. Os ajudantes estavam todos recolhidos às camas no andar de cima do prédio. Eram todos crianças. Não o poderiam valer de muito. O artesão aceitava crianças como aprendizes. Rendiam bastante, não fosse o facto de a partir de certas horas da noite começarem a dar prejuízo. A concentração baixava e os acidentes aconteciam. Chaves aprendera a mandá-los fazer as tarefas caseiras quando o dia se transformava em noite. Estava sozinho. Lançou uma mão por trás das costas à maçaneta da porta. Teria de ser rápido. Deteve a respiração e arriscou-se.
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