Gaia (Adoa Coelho)

Gaia é a personificação do antigo poder matriarcal das antigas culturas Indo-Européias. É a Grande Mãe que dá e tira, que nutre e depois devora os próprios filhos após sua morte. É a força elementar que dá sustento e possibilita a ordem do mundo. Nos mitos gregos, os conflitos entre Gaia e as divindades masculinas representam a ascensão do poder patriarcal e da sociedade grega sobre os povos pré-existentes.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

O Cálice da Vingança - 7ª e última parte


- Bom dia.
- Bom dia. Em que lhe posso ser útil?
- Poderia vossa excelência chamar o artesão Chaves?
- Lamento muito, mas ele não se encontra aqui, de momento. Posso ajudá-lo?
- Precisava muito falar com ele. Quando volta?
- Ele deixou-me encarregue da loja, sou o primo. Ele não disse quando voltaria. Pode adiantar o assunto? Quem sabe posso ajudar.
- É por causa de um cálice...
- Hum... – O homem à frente da loja mostrou-se pensativo. – Mas... aconteceu algo? Partiu?...
- Não sei. Funcionava bem até hoje bem cedo.
- Como?

Satisfeito com o rumo que a sua vida tomava, Braguinha travava amizade com os políticos mais influentes de Portugal, seu país. Sonhava já com o posto mais alto na política. Quiçá chegaria a ser conselheiro do rei, quiçá, com este rei deposto...

Depressa se habituara aos olhares concentrados em si, à atenção desmedida pelos colegas de tribuna. Em apenas três dias evoluíra tanto que as mudanças pareciam ter meses, mesmo anos. – Bendito cálice – repetia para com os botões ao levantar-se pela manhã, saboreando o doce destino que profetizava.



Neste dia saiu à rua e foi atacado pelo cheiro agreste do lixo, águas paradas e dejectos humanos. Ao passar pelo mercado, foi abruptamente saudado pelo conteúdo do balde da peixeira, que atirava águas de limpar a mercadoria no bueiro mais próximo, que se encontrava exactamente a seguir ao espaço corporal do político. Chegado ao parlamento, o porteiro pediu-lhe as credenciais, deixara de o reconhecer. Os colegas nem o viram. – Que estranho! Toda a cidade fede como antes. Ninguém me trata bem... – Resolveu voltar atrás. Mal o fez, recebeu o brinde do dia (até ali...) – a rapariga com quem andava engraçado, embrulhava-se nos braços de um qualquer homem, na rua e nem ele o conhecia! 

- Vou tirar isto a limpo! – Foi a correr para casa. Voltou a beber do cálice. Era o mesmo copo de onde tinha bebido todos os aqueles dias. Mas já não funcionava. Porquê? O copista havia de ter uma resposta. Ou fora roubado durante a noite ou muito bem enganado. Mas como? A rapariga? Não! Ela era demasiado ignorante para perceber o que fosse. Nem teria coragem para lhe aparecer à frente fosse esse o caso... Não, isto era obra do artesão. Só podia ser...

- Talvez se formos para dentro, possamos falar à vontade... – Falou o primo do mestre vidreiro. – Faça o favor de me seguir.
- Certamente senhor...? Enquanto caminhavam, Braguinha tropeçou num caco de vidro.
- Não ligue. Por vezes acontecem acidentes por aqui. Sabe como são os vidros... Cepo.
- Desculpe?
- Ah... Não compreendeu... Vossa senhoria pode tratar-me por Cepo.
- Curioso nome! – Admirou-se Braguinha. – Afinal onde anda o seu primo?
Cara de Cepo ordenou o mais velho dos ajudantes fechar a loja e subir, juntamente com os restantes miúdos e aguardar novas instruções. Acostumados a obedecer ordens, assim fizeram. – Agora podemos falar à vontade.
- Muito agradecido! Queira compreender sua senhoria que este assunto é verdadeiramente delicado.
- Deveras. – Cara de Cepo certificou-se de que não seriam ouvidos ou interrompidos. – Tem aí o seu cálice?
- Sim. Será que estragou?
- Não acredito. Tem mais alguma cópia?
- Não. Mas há mais cópias?
- Veja sua excelência que o meu primo...
- Não! – O político já adivinhava o que iria ouvir.
- Pois é verdade. Ele fez várias cópias do cálice e quis enganar toda a gente.
- Não!
- Sim! – Cepo aguentava-se. Queria rir. Sentia-se superior. Havia encontrado o verdadeiro cálice, livrou-se do artesão e estava prestes a acabar com o último testemunho dos poderes da taça. Fazia um trabalhinho limpo – tudo para dentro da fornalha, junto com o vidro derretido... – ficava com o negócio dos vidros, os miúdos trabalhariam para ele de graça e ficava sem problemas para a velhice que não tardava em chegar. Que mais poderia querer? 

Pegou na cópia do cálice do político e desfê-la contra a parede.
Chocado, Braguinha ficou sem reacção. Apenas seguiu os passos do homem que estava à sua frente. – Então não há hipóteses de reaver o verdadeiro cálice?
- Nenhumas. O meu primo assegurou-se. Como pode ver, tenho aqui mais algumas cópias – mostrou-as – e não têm qualquer valor. – Cepo pegou nelas e também as desfez.
Braguinha ficou desanimado. Tantos planos para nada. Tantas ilusões...
- Mas diga-me. O que fez o cálice por si?

O Político contou-lhe os passados dias. Mostrando-se muito interessado, Cara de Cepo ouviu tudo. Braguinha desabafou e mostrou-se tão desiludido que Cepo achou não ser necessário limpar-lhe os passos.
- Pois, é como vê. O meu primo fugiu para parte incerta com o cálice verdadeiro. Deixou-me aqui com o negócio às costas. Nem sei como vou aguentar isto, sem ele.



- Desejo-lhe sorte meu senhor. – O político não era muito esperto. Os químicos da taça verdadeira que o mestre havia colocado na cópia haviam-lhe transformado a vida. Aderidos com cola de coelho, os componentes generosamente cedidos pelo cálice, foram o bastante para que, juntamente com o poder de sugestão, Braguinha conseguisse temporariamente alcançar os seus desejos. Agora, e sem perspectiva de reaver o querido tesouro que reteve tão pouco tempo, condenou-se a aceitar o novo destino. Cabisbaixo, despediu-se.

Cara de Cepo, mal o homem desaparecera da loja, permitiu-se rir a todo o volume. Encheu a caixa torácica e explodiu-a com prazer. Essa noite iria celebrar com o seu antigo amigo – o Cálice! A sós. Não precisava de mais ninguém. Podia o mundo desistir de durar que lhe bastava o fiel amigo, que agora segurava entre mãos.
- Você! – Ante a surpresa daquela voz, o pirata deu meia volta. – Você tem o Cálice!
Cepo riu ainda mais que os músculos da cara quase se contorceram com o acto. Uma ruga aparecera, rodeando os lábios, fora tudo.

Braguinha, furioso, procurou a arma que estava algures num dos bolsos do casaco comprido que usava.
Cepo, que nunca descuidava da sua Impaciente, chegou-lhe primeiro acariciando o pescoço do político com ela. Bem tinha razão em tratá-la intimamente assim. Sempre que se aproximava do cálice, ficava mais desperto. Notava-o conscientemente. A ligação entre os dois era endémica. 

- Você é mesmo primo do artesão? – Perguntou Braguinha desconfiado.
- Oh homem! Com esta espada?
- Foi você quem matou o Gagueiro!
- Ah, ah, ah, ah! Tarde demais para ficar inteligente, não acha? – E com esta última frase, Cepo brindou o adversário com o golpe da paz eterna, para depois reparar. – Bafo de cão! Vou ter de limpar tudo outra vez! – O sangue escorria. Depressa arrastou o corpo para a fornalha. Esperou um pouco antes de chamar os rapazes. Entretanto limpou as marcas líquidas do falecido visitante e disse para se controlar. – Não podes matar todos os clientes que entrarem. Foi o primeiro e o último está bem? Já terminaste com o artesão, agora um cliente. Assim vamos à falência! – Cepo recuperava o riso temporariamente parado. – Quando isto não der mais, acho que podias dedicar-te ao espectáculo!



Havia piratas que aguentavam ouvir as suas histórias continuamente, rir e bater palmas de e a si mesmos. Cara de Cepo era um deles.

Cheio de pompa e circunstância, batia à porta o emissário do rei. – Venho buscar a encomenda para a sua majestade.
O aprendiz mais velho atendeu.
- Onde está o teu mestre? – Ordenou o emissário.
- O mestre não se encontra aqui faz dois dias, mas o primo esteve a trabalhar no cálice toda a noite. Eu não queria incomodá-lo. Deve estar muito cansado. Já o tentei chamar, mas nem se mexe. Até parece morto... Queira perdoa-me, senhor. Eu trago-lhe o cálice.
O rapaz pegou no cálice. Tinha a certeza de que era o certo. Depois de tantas provas que o mestre havia feito, parecera-lhe aquela a melhor das peças. Bom, a única, já que todas as outras haviam sido destruídas. O rapaz tinha orgulho de trabalhar com um mestre tão criterioso e perfeccionista como o que ele tinha. Achou o primo dele meio estranho. Não tinha bem a certeza de ele saber o que fazia, mas ordens eram ordens, e se o mestre tinha dito ao primo para ficar com a loja, quem era ele para duvidar?

O cálice, que aterrorizara as peças todas na loja desde que regressara, estava finalmente feliz. Conseguira vingar-se de todos quantos lhe puseram mão. Estava a caminho do seu destino primordial. Foram precisos anos - não importava. Foram precisos os químicos das suas paredes - tão-pouco importava. Estava a apenas um passo de libertar o que a bolha continha e nem ele próprio sabia. Serviria unicamente uma vez, mas estava orgulhoso. Serviria o rei. A alma que o artesão lhe emprestara para o criar, finalmente seria liberta e juntar-se-ía à que, incompleta, agora a buscava desde que o mestre aspirara pela última vez. Nunca saberia que nele residia a frustração do seu criador de quando se sentia incapaz de perfeição. Por isso era a bolha grosseira, porque o que a preenchia também o era. 

Estranhara o artesão que desde aquele cálice, vergonha das suas vergonhas, nunca mais realizara um trabalho com incorrecção. No entanto, era precisamente aquela peça que o perseguia e que por ela viria a morrer.


segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

O Cálice da Vingança - Parte 6/7



Cara de Cepo previu a fuga e atirou-se para cima do indivíduo. A especialidade do artesão não era a rapidez, pelo menos, não o que estamos habituados a chamar de rapidez. Acostumado a trabalhar com precisão e calma, atrapalhou-se e deu com a cabeça na porta. Ficou zonzo. O corsário colocou-lhe as mãos em cima. Ainda tentou livrar-se dele, mas era presa, já. Caíram para dentro da oficina. Cepo verticalizou-se enquanto não largava o artífice. Encaixou a mão livre bem entre a queixada e o peito do mal-sofrido homem e desembainhou finalmente a Impaciente. – Quero o Cálice! – Gritou. O calor do estúdio era-lhe quase insuportável.

Chaves nem pestanejou. Sabia bem ao que o pirata se referia.
- Não tenho nada. – Estrebuchou linguamente entre os dentes.
- Pensa lá melhor... eu dou-te uma ajuda. – Com a espada, Cepo pintou a vermelho uma mancha que, com a ajuda da sudação, se espalhou possantemente pela face.
Incontrolado, o artesão desviava a sua atenção para um canto da sala. Ele não queria, mas inconscientemente fazia-o. Cepo reparou e largou-o por ora. – Ías viajar, é? – Apressou-se para a mala que repousava num canto. 

Chaves, que prevera um ataque similar, preparava-se para desaparecer levando consigo o tesouro tão cobiçado por todos. Quando o político Gagueiro lhe aparecera pela primeira vez na loja, não suspeitava o que o levava ali. Pensou que piratas em terra eram mau agoiro; depois, pensou que o pirata teria bebido demais. Enganou-se apenas na segunda suposição. O pirata ainda não tinha bebido o suficiente nesse dia.
- Uma cópia desse cálice? Mas é imperfeito! 

- Você não faz ideia do que criou, pois não?

- Devia tê-lo partido, em vez de o vender para recuperar o dinheiro dos materiais. – Lamentava-se o artesão.
Gagueiro chocado com tais palavras, nem sabia se havia de simplesmente bater no homem ou elucidá-lo. Acabou por – Veja, apenas preciso que faça uma cópia do cálice. É-lhe difícil a tarefa?

- De todo! Apenas não percebo...

- Nem precisa perceber! – Interrompeu o pirata abruptamente. – Para quando pode fazê-lo?
- Bom... Tem de deixar aqui a peça para que lhe tire as medidas... Para a semana está pronta. – Disse satisfeito.

- Tem até amanhã - cortou o pirata. – Pode começar a tirar as medidas enquanto espero.
- Mas não é assim que trabalho!

- Tenho a certeza que ainda assim, fará um excelente trabalho! – Gagueiro sorriu, colocou um braço em jeito ameaçador à volta dos ombros do artesão que, perante tal conselho, chamou o aprendiz mais experiente para que tratasse das demais encomendas. Ansioso, o político pirata retirou o cálice com grandes cuidados da sua bolsa em couro e deu-o ao seu criador.

- Eu próprio tratarei da cópia...

- Nem esperava outra coisa. – Gagueiro estava satisfeito.
- Seria uma excelente peça, não fosse a bolha... – O artesão tentava fazer conversa, mas o pirata falava-se com poucas palavras.


Observou de perto tudo o que o artífice fazia, pouco depois, quando todas as medidas e anotações estavam feitas, pegou na taça e deixou o mestre trabalhar – Até amanhã. – Disse.

Labutou incansável dia, noite e todos os minutos que Gagueiro lhe concedeu até voltar à loja. Por vezes necessitava fazer estes sacrifícios para atender a um pedido urgente, mas não gostava. Aprendeu em Itália o seu ofício, com os melhores, e orgulhava-se. Prendera técnicas que mais ninguém conhecia no seu país, por isso dava-se a certos luxos, por isso tinha a sua reputação.

Quando o pirata chegou, no fim da tarde do seguinte dia, tinha o trabalho quase pronto.

- Poderia ver o original? – Suplicou humildemente.

- Para quê?

- Preciso ter a certeza de que ficou exactamente igual, sua excelência... – Pediu baixando a cabeça. Geralmente guardava todos os desenhos e planos das peças, ainda que soubesse que era quase impossível fazer ao milímetro como as idealizava. Os imprevistos faziam parte do trabalho de artesão do vidro e era precisamente aí que se traçava a linha entre simples obreiro e mestre. – Vossa senhoria é do Partido dos Piratas, estou certo?

- Está certo... – Gagueiro não aprovava falar da sua vida com estranhos.
- É para oferecer a cópia do cálice a alguém?
- Não é da sua conta! – Repeliu-o prontamente. – Quero ver a cópia.
- Vaça o favor sua excelência... tive muitas dificuldades para recriar essa bolha... Esse tipo de bolhas não são propriamente coisa que gostemos de fazer neste ofício...

- Estou a ver. Mas parece-me bom, o trabalho.

- Devo dizer que me excedi! Se sua excelência não objectar a imodéstia. – Chaves era um homem orgulhoso do seu trabalho. Na verdade, apenas se deixou vender a peça em questão, por causa das pedras preciosas que a ornamentavam. O cálice tinha por cliente a mesa do rei, daí a qualidade ter de ser derradeira. Sempre destruía as peças defeituosas. Ninguém lhe conhecia trabalho imperfeito, a sua reputação era tão perfeita, que chegara aos ouvidos do rei. Este, por pompa, afectação, imodéstia... governamental, exigia unicamente do melhor para si.

Gagueiro, satisfeito com a cópia, pagou com uma bolsa cheia advertindo o mestre a manter silêncio sobre a obra para ele realizada, senão... Chaves tossiu, captando o sentido da mensagem.

Agora tranquilo, o mestre vidreiro tentou esquecer a experiência. Limpou o suor que governava as feições e voltou às encomendas gritando com os catraios que, tentando não desiludir o instrutor, corriam em seu redor.
Cliente satisfeito, boa maquia no cofre, estava tudo conforme não fosse mais tarde...  receber a visita de outro político com um pedido deveras estranho: de novo o cálice; de novo uma cópia do mesmo. Mas que teria de tão especial a peça? Devia tê-la desfeito. O homem inquietava-se de novo. 

Foi obrigado, a pedido de Braguinha, a dissimular o seu aspecto de modo a ir nas rusgas nocturnas com os  dois políticos amigos, para observar a taça. Mais tarde teve de ir sorrateiro a casa do pirata político para fazer medidas, de novo. Ele não contara ao novo cliente que fizera, dias antes, uma cópia. Entrou no jogo, embora se tivesse prometido que não queria mais saber daquele cálice, queria descobrir o que tinha de especial. Porquê tantas histórias à volta dele? Ali havia coisa. Ele tinha de saber, afinal de contas, com defeito ou não, era uma peça de sua autoria.

Fez a réplica pedida pelo político e após certificar-se da exactidão da mesma, com comparação visual cuidada e demorada... entregou a jóia. Mas, como quem faz uma cópia, faz duas ou três, o artesão fez várias e nem o Gagueiro ou o Braguinha sabiam. Cara de Cepo descobriu-o por azar. Não fazia ideia das histórias pelas que o mestre acabara de passar.


Parte 7/7  (última) AQUI