Cara de Cepo previu a fuga e atirou-se para cima do indivíduo. A especialidade do artesão não era a rapidez, pelo menos, não o que estamos habituados a chamar de rapidez. Acostumado a trabalhar com precisão e calma, atrapalhou-se e deu com a cabeça na porta. Ficou zonzo. O corsário colocou-lhe as mãos em cima. Ainda tentou livrar-se dele, mas era presa, já. Caíram para dentro da oficina. Cepo verticalizou-se enquanto não largava o artífice. Encaixou a mão livre bem entre a queixada e o peito do mal-sofrido homem e desembainhou finalmente a Impaciente. – Quero o Cálice! – Gritou. O calor do estúdio era-lhe quase insuportável.
Chaves nem pestanejou. Sabia bem ao que o pirata se referia.
- Não tenho nada. – Estrebuchou linguamente entre os dentes.
- Pensa lá melhor... eu dou-te uma ajuda. – Com a espada, Cepo pintou a vermelho uma mancha que, com a ajuda da sudação, se espalhou possantemente pela face.
Incontrolado, o artesão desviava a sua atenção para um canto da sala. Ele não queria, mas inconscientemente fazia-o. Cepo reparou e largou-o por ora. – Ías viajar, é? – Apressou-se para a mala que repousava num canto.
Chaves, que prevera um ataque similar, preparava-se para desaparecer levando consigo o tesouro tão cobiçado por todos. Quando o político Gagueiro lhe aparecera pela primeira vez na loja, não suspeitava o que o levava ali. Pensou que piratas em terra eram mau agoiro; depois, pensou que o pirata teria bebido demais. Enganou-se apenas na segunda suposição. O pirata ainda não tinha bebido o suficiente nesse dia.
- Uma cópia desse cálice? Mas é imperfeito!
- Você não faz ideia do que criou, pois não?
- Devia tê-lo partido, em vez de o vender para recuperar o dinheiro dos materiais. – Lamentava-se o artesão.
Gagueiro chocado com tais palavras, nem sabia se havia de simplesmente bater no homem ou elucidá-lo. Acabou por – Veja, apenas preciso que faça uma cópia do cálice. É-lhe difícil a tarefa?
- De todo! Apenas não percebo...
- Nem precisa perceber! – Interrompeu o pirata abruptamente. – Para quando pode fazê-lo?
- Bom... Tem de deixar aqui a peça para que lhe tire as medidas... Para a semana está pronta. – Disse satisfeito.
- Tem até amanhã - cortou o pirata. – Pode começar a tirar as medidas enquanto espero.
- Mas não é assim que trabalho!
- Tenho a certeza que ainda assim, fará um excelente trabalho! – Gagueiro sorriu, colocou um braço em jeito ameaçador à volta dos ombros do artesão que, perante tal conselho, chamou o aprendiz mais experiente para que tratasse das demais encomendas. Ansioso, o político pirata retirou o cálice com grandes cuidados da sua bolsa em couro e deu-o ao seu criador.
- Eu próprio tratarei da cópia...
- Nem esperava outra coisa. – Gagueiro estava satisfeito.
- Seria uma excelente peça, não fosse a bolha... – O artesão tentava fazer conversa, mas o pirata falava-se com poucas palavras.
Observou de perto tudo o que o artífice fazia, pouco depois, quando todas as medidas e anotações estavam feitas, pegou na taça e deixou o mestre trabalhar – Até amanhã. – Disse.
Labutou incansável dia, noite e todos os minutos que Gagueiro lhe concedeu até voltar à loja. Por vezes necessitava fazer estes sacrifícios para atender a um pedido urgente, mas não gostava. Aprendeu em Itália o seu ofício, com os melhores, e orgulhava-se. Prendera técnicas que mais ninguém conhecia no seu país, por isso dava-se a certos luxos, por isso tinha a sua reputação.
Quando o pirata chegou, no fim da tarde do seguinte dia, tinha o trabalho quase pronto.
- Poderia ver o original? – Suplicou humildemente.
- Para quê?
- Preciso ter a certeza de que ficou exactamente igual, sua excelência... – Pediu baixando a cabeça. Geralmente guardava todos os desenhos e planos das peças, ainda que soubesse que era quase impossível fazer ao milímetro como as idealizava. Os imprevistos faziam parte do trabalho de artesão do vidro e era precisamente aí que se traçava a linha entre simples obreiro e mestre. – Vossa senhoria é do Partido dos Piratas, estou certo?
- Está certo... – Gagueiro não aprovava falar da sua vida com estranhos.
- É para oferecer a cópia do cálice a alguém?
- Não é da sua conta! – Repeliu-o prontamente. – Quero ver a cópia.
- Vaça o favor sua excelência... tive muitas dificuldades para recriar essa bolha... Esse tipo de bolhas não são propriamente coisa que gostemos de fazer neste ofício...
- Estou a ver. Mas parece-me bom, o trabalho.
- Devo dizer que me excedi! Se sua excelência não objectar a imodéstia. – Chaves era um homem orgulhoso do seu trabalho. Na verdade, apenas se deixou vender a peça em questão, por causa das pedras preciosas que a ornamentavam. O cálice tinha por cliente a mesa do rei, daí a qualidade ter de ser derradeira. Sempre destruía as peças defeituosas. Ninguém lhe conhecia trabalho imperfeito, a sua reputação era tão perfeita, que chegara aos ouvidos do rei. Este, por pompa, afectação, imodéstia... governamental, exigia unicamente do melhor para si.
Gagueiro, satisfeito com a cópia, pagou com uma bolsa cheia advertindo o mestre a manter silêncio sobre a obra para ele realizada, senão... Chaves tossiu, captando o sentido da mensagem.
Agora tranquilo, o mestre vidreiro tentou esquecer a experiência. Limpou o suor que governava as feições e voltou às encomendas gritando com os catraios que, tentando não desiludir o instrutor, corriam em seu redor.
Cliente satisfeito, boa maquia no cofre, estava tudo conforme não fosse mais tarde... receber a visita de outro político com um pedido deveras estranho: de novo o cálice; de novo uma cópia do mesmo. Mas que teria de tão especial a peça? Devia tê-la desfeito. O homem inquietava-se de novo.
Foi obrigado, a pedido de Braguinha, a dissimular o seu aspecto de modo a ir nas rusgas nocturnas com os dois políticos amigos, para observar a taça. Mais tarde teve de ir sorrateiro a casa do pirata político para fazer medidas, de novo. Ele não contara ao novo cliente que fizera, dias antes, uma cópia. Entrou no jogo, embora se tivesse prometido que não queria mais saber daquele cálice, queria descobrir o que tinha de especial. Porquê tantas histórias à volta dele? Ali havia coisa. Ele tinha de saber, afinal de contas, com defeito ou não, era uma peça de sua autoria.
Fez a réplica pedida pelo político e após certificar-se da exactidão da mesma, com comparação visual cuidada e demorada... entregou a jóia. Mas, como quem faz uma cópia, faz duas ou três, o artesão fez várias e nem o Gagueiro ou o Braguinha sabiam. Cara de Cepo descobriu-o por azar. Não fazia ideia das histórias pelas que o mestre acabara de passar.
Parte 7/7 (última) AQUI
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