Gaia (Adoa Coelho)

Gaia é a personificação do antigo poder matriarcal das antigas culturas Indo-Européias. É a Grande Mãe que dá e tira, que nutre e depois devora os próprios filhos após sua morte. É a força elementar que dá sustento e possibilita a ordem do mundo. Nos mitos gregos, os conflitos entre Gaia e as divindades masculinas representam a ascensão do poder patriarcal e da sociedade grega sobre os povos pré-existentes.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

O Cálice da Vingança - 7ª e última parte


- Bom dia.
- Bom dia. Em que lhe posso ser útil?
- Poderia vossa excelência chamar o artesão Chaves?
- Lamento muito, mas ele não se encontra aqui, de momento. Posso ajudá-lo?
- Precisava muito falar com ele. Quando volta?
- Ele deixou-me encarregue da loja, sou o primo. Ele não disse quando voltaria. Pode adiantar o assunto? Quem sabe posso ajudar.
- É por causa de um cálice...
- Hum... – O homem à frente da loja mostrou-se pensativo. – Mas... aconteceu algo? Partiu?...
- Não sei. Funcionava bem até hoje bem cedo.
- Como?

Satisfeito com o rumo que a sua vida tomava, Braguinha travava amizade com os políticos mais influentes de Portugal, seu país. Sonhava já com o posto mais alto na política. Quiçá chegaria a ser conselheiro do rei, quiçá, com este rei deposto...

Depressa se habituara aos olhares concentrados em si, à atenção desmedida pelos colegas de tribuna. Em apenas três dias evoluíra tanto que as mudanças pareciam ter meses, mesmo anos. – Bendito cálice – repetia para com os botões ao levantar-se pela manhã, saboreando o doce destino que profetizava.



Neste dia saiu à rua e foi atacado pelo cheiro agreste do lixo, águas paradas e dejectos humanos. Ao passar pelo mercado, foi abruptamente saudado pelo conteúdo do balde da peixeira, que atirava águas de limpar a mercadoria no bueiro mais próximo, que se encontrava exactamente a seguir ao espaço corporal do político. Chegado ao parlamento, o porteiro pediu-lhe as credenciais, deixara de o reconhecer. Os colegas nem o viram. – Que estranho! Toda a cidade fede como antes. Ninguém me trata bem... – Resolveu voltar atrás. Mal o fez, recebeu o brinde do dia (até ali...) – a rapariga com quem andava engraçado, embrulhava-se nos braços de um qualquer homem, na rua e nem ele o conhecia! 

- Vou tirar isto a limpo! – Foi a correr para casa. Voltou a beber do cálice. Era o mesmo copo de onde tinha bebido todos os aqueles dias. Mas já não funcionava. Porquê? O copista havia de ter uma resposta. Ou fora roubado durante a noite ou muito bem enganado. Mas como? A rapariga? Não! Ela era demasiado ignorante para perceber o que fosse. Nem teria coragem para lhe aparecer à frente fosse esse o caso... Não, isto era obra do artesão. Só podia ser...

- Talvez se formos para dentro, possamos falar à vontade... – Falou o primo do mestre vidreiro. – Faça o favor de me seguir.
- Certamente senhor...? Enquanto caminhavam, Braguinha tropeçou num caco de vidro.
- Não ligue. Por vezes acontecem acidentes por aqui. Sabe como são os vidros... Cepo.
- Desculpe?
- Ah... Não compreendeu... Vossa senhoria pode tratar-me por Cepo.
- Curioso nome! – Admirou-se Braguinha. – Afinal onde anda o seu primo?
Cara de Cepo ordenou o mais velho dos ajudantes fechar a loja e subir, juntamente com os restantes miúdos e aguardar novas instruções. Acostumados a obedecer ordens, assim fizeram. – Agora podemos falar à vontade.
- Muito agradecido! Queira compreender sua senhoria que este assunto é verdadeiramente delicado.
- Deveras. – Cara de Cepo certificou-se de que não seriam ouvidos ou interrompidos. – Tem aí o seu cálice?
- Sim. Será que estragou?
- Não acredito. Tem mais alguma cópia?
- Não. Mas há mais cópias?
- Veja sua excelência que o meu primo...
- Não! – O político já adivinhava o que iria ouvir.
- Pois é verdade. Ele fez várias cópias do cálice e quis enganar toda a gente.
- Não!
- Sim! – Cepo aguentava-se. Queria rir. Sentia-se superior. Havia encontrado o verdadeiro cálice, livrou-se do artesão e estava prestes a acabar com o último testemunho dos poderes da taça. Fazia um trabalhinho limpo – tudo para dentro da fornalha, junto com o vidro derretido... – ficava com o negócio dos vidros, os miúdos trabalhariam para ele de graça e ficava sem problemas para a velhice que não tardava em chegar. Que mais poderia querer? 

Pegou na cópia do cálice do político e desfê-la contra a parede.
Chocado, Braguinha ficou sem reacção. Apenas seguiu os passos do homem que estava à sua frente. – Então não há hipóteses de reaver o verdadeiro cálice?
- Nenhumas. O meu primo assegurou-se. Como pode ver, tenho aqui mais algumas cópias – mostrou-as – e não têm qualquer valor. – Cepo pegou nelas e também as desfez.
Braguinha ficou desanimado. Tantos planos para nada. Tantas ilusões...
- Mas diga-me. O que fez o cálice por si?

O Político contou-lhe os passados dias. Mostrando-se muito interessado, Cara de Cepo ouviu tudo. Braguinha desabafou e mostrou-se tão desiludido que Cepo achou não ser necessário limpar-lhe os passos.
- Pois, é como vê. O meu primo fugiu para parte incerta com o cálice verdadeiro. Deixou-me aqui com o negócio às costas. Nem sei como vou aguentar isto, sem ele.



- Desejo-lhe sorte meu senhor. – O político não era muito esperto. Os químicos da taça verdadeira que o mestre havia colocado na cópia haviam-lhe transformado a vida. Aderidos com cola de coelho, os componentes generosamente cedidos pelo cálice, foram o bastante para que, juntamente com o poder de sugestão, Braguinha conseguisse temporariamente alcançar os seus desejos. Agora, e sem perspectiva de reaver o querido tesouro que reteve tão pouco tempo, condenou-se a aceitar o novo destino. Cabisbaixo, despediu-se.

Cara de Cepo, mal o homem desaparecera da loja, permitiu-se rir a todo o volume. Encheu a caixa torácica e explodiu-a com prazer. Essa noite iria celebrar com o seu antigo amigo – o Cálice! A sós. Não precisava de mais ninguém. Podia o mundo desistir de durar que lhe bastava o fiel amigo, que agora segurava entre mãos.
- Você! – Ante a surpresa daquela voz, o pirata deu meia volta. – Você tem o Cálice!
Cepo riu ainda mais que os músculos da cara quase se contorceram com o acto. Uma ruga aparecera, rodeando os lábios, fora tudo.

Braguinha, furioso, procurou a arma que estava algures num dos bolsos do casaco comprido que usava.
Cepo, que nunca descuidava da sua Impaciente, chegou-lhe primeiro acariciando o pescoço do político com ela. Bem tinha razão em tratá-la intimamente assim. Sempre que se aproximava do cálice, ficava mais desperto. Notava-o conscientemente. A ligação entre os dois era endémica. 

- Você é mesmo primo do artesão? – Perguntou Braguinha desconfiado.
- Oh homem! Com esta espada?
- Foi você quem matou o Gagueiro!
- Ah, ah, ah, ah! Tarde demais para ficar inteligente, não acha? – E com esta última frase, Cepo brindou o adversário com o golpe da paz eterna, para depois reparar. – Bafo de cão! Vou ter de limpar tudo outra vez! – O sangue escorria. Depressa arrastou o corpo para a fornalha. Esperou um pouco antes de chamar os rapazes. Entretanto limpou as marcas líquidas do falecido visitante e disse para se controlar. – Não podes matar todos os clientes que entrarem. Foi o primeiro e o último está bem? Já terminaste com o artesão, agora um cliente. Assim vamos à falência! – Cepo recuperava o riso temporariamente parado. – Quando isto não der mais, acho que podias dedicar-te ao espectáculo!



Havia piratas que aguentavam ouvir as suas histórias continuamente, rir e bater palmas de e a si mesmos. Cara de Cepo era um deles.

Cheio de pompa e circunstância, batia à porta o emissário do rei. – Venho buscar a encomenda para a sua majestade.
O aprendiz mais velho atendeu.
- Onde está o teu mestre? – Ordenou o emissário.
- O mestre não se encontra aqui faz dois dias, mas o primo esteve a trabalhar no cálice toda a noite. Eu não queria incomodá-lo. Deve estar muito cansado. Já o tentei chamar, mas nem se mexe. Até parece morto... Queira perdoa-me, senhor. Eu trago-lhe o cálice.
O rapaz pegou no cálice. Tinha a certeza de que era o certo. Depois de tantas provas que o mestre havia feito, parecera-lhe aquela a melhor das peças. Bom, a única, já que todas as outras haviam sido destruídas. O rapaz tinha orgulho de trabalhar com um mestre tão criterioso e perfeccionista como o que ele tinha. Achou o primo dele meio estranho. Não tinha bem a certeza de ele saber o que fazia, mas ordens eram ordens, e se o mestre tinha dito ao primo para ficar com a loja, quem era ele para duvidar?

O cálice, que aterrorizara as peças todas na loja desde que regressara, estava finalmente feliz. Conseguira vingar-se de todos quantos lhe puseram mão. Estava a caminho do seu destino primordial. Foram precisos anos - não importava. Foram precisos os químicos das suas paredes - tão-pouco importava. Estava a apenas um passo de libertar o que a bolha continha e nem ele próprio sabia. Serviria unicamente uma vez, mas estava orgulhoso. Serviria o rei. A alma que o artesão lhe emprestara para o criar, finalmente seria liberta e juntar-se-ía à que, incompleta, agora a buscava desde que o mestre aspirara pela última vez. Nunca saberia que nele residia a frustração do seu criador de quando se sentia incapaz de perfeição. Por isso era a bolha grosseira, porque o que a preenchia também o era. 

Estranhara o artesão que desde aquele cálice, vergonha das suas vergonhas, nunca mais realizara um trabalho com incorrecção. No entanto, era precisamente aquela peça que o perseguia e que por ela viria a morrer.


segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

O Cálice da Vingança - Parte 6/7



Cara de Cepo previu a fuga e atirou-se para cima do indivíduo. A especialidade do artesão não era a rapidez, pelo menos, não o que estamos habituados a chamar de rapidez. Acostumado a trabalhar com precisão e calma, atrapalhou-se e deu com a cabeça na porta. Ficou zonzo. O corsário colocou-lhe as mãos em cima. Ainda tentou livrar-se dele, mas era presa, já. Caíram para dentro da oficina. Cepo verticalizou-se enquanto não largava o artífice. Encaixou a mão livre bem entre a queixada e o peito do mal-sofrido homem e desembainhou finalmente a Impaciente. – Quero o Cálice! – Gritou. O calor do estúdio era-lhe quase insuportável.

Chaves nem pestanejou. Sabia bem ao que o pirata se referia.
- Não tenho nada. – Estrebuchou linguamente entre os dentes.
- Pensa lá melhor... eu dou-te uma ajuda. – Com a espada, Cepo pintou a vermelho uma mancha que, com a ajuda da sudação, se espalhou possantemente pela face.
Incontrolado, o artesão desviava a sua atenção para um canto da sala. Ele não queria, mas inconscientemente fazia-o. Cepo reparou e largou-o por ora. – Ías viajar, é? – Apressou-se para a mala que repousava num canto. 

Chaves, que prevera um ataque similar, preparava-se para desaparecer levando consigo o tesouro tão cobiçado por todos. Quando o político Gagueiro lhe aparecera pela primeira vez na loja, não suspeitava o que o levava ali. Pensou que piratas em terra eram mau agoiro; depois, pensou que o pirata teria bebido demais. Enganou-se apenas na segunda suposição. O pirata ainda não tinha bebido o suficiente nesse dia.
- Uma cópia desse cálice? Mas é imperfeito! 

- Você não faz ideia do que criou, pois não?

- Devia tê-lo partido, em vez de o vender para recuperar o dinheiro dos materiais. – Lamentava-se o artesão.
Gagueiro chocado com tais palavras, nem sabia se havia de simplesmente bater no homem ou elucidá-lo. Acabou por – Veja, apenas preciso que faça uma cópia do cálice. É-lhe difícil a tarefa?

- De todo! Apenas não percebo...

- Nem precisa perceber! – Interrompeu o pirata abruptamente. – Para quando pode fazê-lo?
- Bom... Tem de deixar aqui a peça para que lhe tire as medidas... Para a semana está pronta. – Disse satisfeito.

- Tem até amanhã - cortou o pirata. – Pode começar a tirar as medidas enquanto espero.
- Mas não é assim que trabalho!

- Tenho a certeza que ainda assim, fará um excelente trabalho! – Gagueiro sorriu, colocou um braço em jeito ameaçador à volta dos ombros do artesão que, perante tal conselho, chamou o aprendiz mais experiente para que tratasse das demais encomendas. Ansioso, o político pirata retirou o cálice com grandes cuidados da sua bolsa em couro e deu-o ao seu criador.

- Eu próprio tratarei da cópia...

- Nem esperava outra coisa. – Gagueiro estava satisfeito.
- Seria uma excelente peça, não fosse a bolha... – O artesão tentava fazer conversa, mas o pirata falava-se com poucas palavras.


Observou de perto tudo o que o artífice fazia, pouco depois, quando todas as medidas e anotações estavam feitas, pegou na taça e deixou o mestre trabalhar – Até amanhã. – Disse.

Labutou incansável dia, noite e todos os minutos que Gagueiro lhe concedeu até voltar à loja. Por vezes necessitava fazer estes sacrifícios para atender a um pedido urgente, mas não gostava. Aprendeu em Itália o seu ofício, com os melhores, e orgulhava-se. Prendera técnicas que mais ninguém conhecia no seu país, por isso dava-se a certos luxos, por isso tinha a sua reputação.

Quando o pirata chegou, no fim da tarde do seguinte dia, tinha o trabalho quase pronto.

- Poderia ver o original? – Suplicou humildemente.

- Para quê?

- Preciso ter a certeza de que ficou exactamente igual, sua excelência... – Pediu baixando a cabeça. Geralmente guardava todos os desenhos e planos das peças, ainda que soubesse que era quase impossível fazer ao milímetro como as idealizava. Os imprevistos faziam parte do trabalho de artesão do vidro e era precisamente aí que se traçava a linha entre simples obreiro e mestre. – Vossa senhoria é do Partido dos Piratas, estou certo?

- Está certo... – Gagueiro não aprovava falar da sua vida com estranhos.
- É para oferecer a cópia do cálice a alguém?
- Não é da sua conta! – Repeliu-o prontamente. – Quero ver a cópia.
- Vaça o favor sua excelência... tive muitas dificuldades para recriar essa bolha... Esse tipo de bolhas não são propriamente coisa que gostemos de fazer neste ofício...

- Estou a ver. Mas parece-me bom, o trabalho.

- Devo dizer que me excedi! Se sua excelência não objectar a imodéstia. – Chaves era um homem orgulhoso do seu trabalho. Na verdade, apenas se deixou vender a peça em questão, por causa das pedras preciosas que a ornamentavam. O cálice tinha por cliente a mesa do rei, daí a qualidade ter de ser derradeira. Sempre destruía as peças defeituosas. Ninguém lhe conhecia trabalho imperfeito, a sua reputação era tão perfeita, que chegara aos ouvidos do rei. Este, por pompa, afectação, imodéstia... governamental, exigia unicamente do melhor para si.

Gagueiro, satisfeito com a cópia, pagou com uma bolsa cheia advertindo o mestre a manter silêncio sobre a obra para ele realizada, senão... Chaves tossiu, captando o sentido da mensagem.

Agora tranquilo, o mestre vidreiro tentou esquecer a experiência. Limpou o suor que governava as feições e voltou às encomendas gritando com os catraios que, tentando não desiludir o instrutor, corriam em seu redor.
Cliente satisfeito, boa maquia no cofre, estava tudo conforme não fosse mais tarde...  receber a visita de outro político com um pedido deveras estranho: de novo o cálice; de novo uma cópia do mesmo. Mas que teria de tão especial a peça? Devia tê-la desfeito. O homem inquietava-se de novo. 

Foi obrigado, a pedido de Braguinha, a dissimular o seu aspecto de modo a ir nas rusgas nocturnas com os  dois políticos amigos, para observar a taça. Mais tarde teve de ir sorrateiro a casa do pirata político para fazer medidas, de novo. Ele não contara ao novo cliente que fizera, dias antes, uma cópia. Entrou no jogo, embora se tivesse prometido que não queria mais saber daquele cálice, queria descobrir o que tinha de especial. Porquê tantas histórias à volta dele? Ali havia coisa. Ele tinha de saber, afinal de contas, com defeito ou não, era uma peça de sua autoria.

Fez a réplica pedida pelo político e após certificar-se da exactidão da mesma, com comparação visual cuidada e demorada... entregou a jóia. Mas, como quem faz uma cópia, faz duas ou três, o artesão fez várias e nem o Gagueiro ou o Braguinha sabiam. Cara de Cepo descobriu-o por azar. Não fazia ideia das histórias pelas que o mestre acabara de passar.


Parte 7/7  (última) AQUI

sábado, 22 de janeiro de 2011

O Cálice da Vingança - Parte 5/7

- Cof, cof, cof... cof, cof! - Tossiu. Tossiu, recuperou e esperou por uma reacção. Olhou-se de cima a baixo. Nada. – Hum. - Endireitou a coluna vertebral, colocou os ombros para trás, peito para a frente, levantou o queixo. Depois de esconder o cálice, viu-se ao espelho. Voltou a calçar os sapatos e saiu para a rua. Braguinha seguiu até à câmara da cidade onde trabalhava. Subiu as escadas que levavam aos fachada e portão principais. As pessoas haviam-no contemplado já durante o caminho, notara-o. Desviava os olhos para baixo mal reparava no mirar directo das pessoas. Será que haviam descoberto os planos? Parou e voltou para trás. Não queria ser apanhado e preso diante dos colegas parlamentares. Seria uma vergonha enorme e inultrapassável. Pegou num jornal, para tentar descobrir alguma coisa. Deu uma moeda ao ardina e perguntou-lhe, como que desinteressadamente – Há novidades? 

- Nenhuma, meu senhor. – Respondeu-lhe o homem com um sorriso. – Quer dizer, o costume da cidade. – Pensou mais um pouco e – Houve um assassinato. Sua senhoria conhecia-o! 

- Sim? – Fez-se despercebido. Afinal, fora ele próprio quem gritara por auxílio e assistira a polícia ao indicar o caminho do assassino.

- Era aquele Pirata que sua senhoria acompanhava muitas vezes...

- EU acompanhava-o? – Braguinha bufou desconcertado, carregando propositadamente no “eu”. 

O ardina encolheu-se, não se atrevia a responder a um político. Sabia lá o que lhe poderia acontecer. Ainda perdia o seu lugar na praça...  ou, sabia lá!


Apesar desta pequena contrariedade, Braguinha sentia-se confiante como nunca. Ah! A cidade tinha outro cheiro. Outras cores. Mais luz. Onde estava o lixo que sempre via em todo o lado? As entranhas de peixe e os esgotos ao ar livre que o repugnavam? Bizarro. Continuavam ali, bem por baixo do seu nariz logo ao sair de casa, mas já não o incomodaram como antes. Teria ficado sem olfacto? Lançou o nariz para o ar. Sentia o cheiro a maresia da qual gostava, a cidade situava-se perto do Oceano, e no entanto... Observava a estrumeira acumulada na feira pelos comerciantes madrugadores e agora não lhe dizia nada. Não lhe revoltava o estômago. Era-lhe quase invisível. Como podia ser? Sendo assim, nem precisaria mais de voltar a beber para aguentar a fetidez. – ‘Co a breca! – Pensava. Estaria torpe? Como, se se achava lúcido? Concentrado? Seria? O mundo decadente em que vivera nos últimos anos estava modificado. Ou era ele quem se modificara? Estranho, muito estranho...

Resolveu-se a entrar finalmente, após vistoriar o jornal e observar os olhos indiscretos que o miravam. Enfrentou-os desta vez. Faziam-lhe vénias à medida que avançava nos corredores ao que ele respondia com semi-vénias e ar desconfiado. Nunca foram tão simpáticos com ele. Aliás, nunca tinham propriamente reparado nele. Sempre se havia sentido como um fantasma a deambular por ali. Até quando caminhava ao lado do Pirata Gagueiro, tinha a impressão de ser e parecer um simples secretário - alguém sem importância, alguém em quem ninguém reparava. Irritado, agarrou na seguinte pessoa que o cumprimentou pela gola do casaco e encostou-a à parede, a poucos centímetros acima do chão, o suficiente para a pessoa ficar em bicos de pés, que ele também não era nenhum valentão. 

- Porque estás a olhar tanto para mim? Nunca me viste, foi?

Imediatamente meia dúzia de políticos se aproximaram. Geralmente davam-se diplomaticamente bem, pelo menos sempre que possível. De vez em quando era o “deus me acuda” e o “salve-se quem puder” em plena assembleia. 

- Perdoe-me sua excelência, mas... mas a sua elegância e distinção são admiráveis. – Gaguejou o homem.

- O quê? Estás a gozar com a minha cara?

- Não! Garanto! Pergunte a quem desejar – o homem apontou a plateia que comentava baixo, entre si. 

- É verdade. – Aproximou-se um homem de abundantes cabelos brancos. – Todos nós estamos admirados pela nobreza de sua excelência. – Concordou fazendo uma vénia.

Braguinha foi obrigado a largar o homem. Todos pareciam concordar entre si, acenando com a cabeça. - Só pode ser acção do cálice! – Pensou e riu de satisfeito. - Afinal funciona!

- Claro, meus excelentíssimos colegas! Afinal nem é como se nos víssemos pela primeira vez... – Disse Braguinha para aliviar a tensão que criara ao agarrar o pobre colega.

Todos ficaram calados. Alguém o vira anteriormente? Se sim, ninguém pareceu recordar-se.

- Gostaria de nos acompanhar, caro...

- Braguinha, sua senhoria...

- ...caro Braguinha?

O político, que sabia muito bem com quem falava acedeu prontamente. O homem grisalho era líder de partido na região. Braguinha não podia deixar escapar a oportunidade de se infiltrar no grupo mais influente daquelas bandas. - Que dia estranho! Seria coincidência ter aparecido este homem precisamente hoje? – Perguntava-se.

Concentrado no trabalho, Chaves, um homem baixo e enxuto, atendia a última cliente do dia quando Cara de Cepo entrou dizendo – Boas noites.

- Boa noite, sua excelência! A quem devo a honra? – Os vidros de todas as cores e feitios alegravam as paredes pontuadas por caleidocópios excêntricos. 

Cepo apontou para uma delas. – Costuma fazer peças dessas por encomenda?

- Depende do cliente... e de quanto está disposto a pagar... sim. – Confirmou o vidreiro, aproveitando para verificar se mais alguém entrava, fechando atrás de si a porta da rua. Estranhou ver um pirata na sua loja. Não era, de todo, o estilo de cliente a quem fornecia trabalhos. – Está interessado em alguma peça em particular? – Agitado, um nervoso miudinho começara a aflorar-lhe a pele. O pirata rodopiava incessantemente pela exposição de obras. 

- Digamos que numa muito em particular. Uma muito especial.

Chaves sentiu-se amolado. – Lamento, mas peças especiais só mesmo por recomendação de amigos e com garantias. – Desculpou-se decidido a terminar por ali a possível transacção comercial. Tentou mesmo indicar o caminho para a porta da rua dirigindo-se para a dita, embora sem sucesso.

Cepo, que subitamente parou de remoinhar pela loja, enfrentou o homem, falou também com determinação na voz: - Creio que sua excelência é amigo do comerciante ali da esquina, do... como se chamava ele?
- Chamava? – O homem desviou-se ligeiramente para trás.

- Sim, chamava. Parece que teve um pequeno acidente há poucos minutos.

- U.. Um a...a... acidente? – Chaves acentuava agora os passos que dava para trás. Não lhe havia parecido boa ideia a entrada do pirata pela loja dentro e avaliava possíveis formas de defesa. Estava em perigo, sabia-o.

- É, são coisas que acontecem quando se tem de puxar pela memória e ela não coopera... 

- É? 

O artesão suava, coisa rara para um homem habituado a temperatura elevadas. Cara de Cepo sorria friamente.

- Você como artesão e criador, também deve fazer cópias por encomenda, não?

- Cópias? Eu sou um homem muito sério! Todas as minhas peças são originais! – Tentava defender a sua honra.

- Ah! Quer enganar a quem? Será que temos de fazer exercícios de memória como com o seu amiguinho? – O negrume da alma de Cepo transparecia, como se a sua pele fosse mais translúcida que os cristais que o rodeavam. 

- Não, não, não! – O homem gaguejava, transpirava, gotejava palavras e pensamentos. Desmoronava-se. 

O pirata, cuidadosamente passava com a espada embainhada demasiado perto dos cristais, deixando um rasto de estilhaços com todas as vogais do abecedário e fazendo soar a melodia mais que uma vez. Cada badalar fazia o artesão pular acima do chão, acima do que alguma vez havia saltado na vida. Estava a chegar à porta do seu atelier. Os ajudantes estavam todos recolhidos às camas no andar de cima do prédio. Eram todos crianças. Não o poderiam valer de muito. O artesão aceitava crianças como aprendizes. Rendiam bastante, não fosse o facto de a partir de certas horas da noite começarem a dar prejuízo. A concentração baixava e os acidentes aconteciam. Chaves aprendera a mandá-los fazer as tarefas caseiras quando o dia se transformava em noite. Estava sozinho. Lançou uma mão por trás das costas à maçaneta da porta. Teria de ser rápido. Deteve a respiração e arriscou-se.


Parte 6/7 AQUI

domingo, 16 de janeiro de 2011

Canção só para ti

"Em memória de Romy Schneider, minha eterna diva!"

Nunca cheguei a dizer-te
Adeus
Good-bye
Hasta siempre!

Nunca cheguei a calar
os meus gritos
porque nunca me ouviste
nem escutaste
a latitude dos meus idiomas.

Nunca cheguei a dizer-te:
Vivi.

Só tu. Mesmo sem
ti
deixaste mais só
a canção.
Sem dizer-te nada de mim.

Afinal, nunca cheguei a cantar
a falar
para ti.

C. C.
in "Desesperadamente"

Também eu a ti nunca cheguei a dizer "até logo" (nunca gostei da palavra "adeus", soa muito a permanente).
Sei que onde estás, deves ter sido recebido por ela, a tua diva.
Deves estar a deliciar-te, mas sabes? Nós, os que ficamos ainda por cá... estamos tristes por teres partido.

Até logo meu querido.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

O Cálice da Vingança - Parte 4/7


Braguinha temia que algo acontecesse, que alguém tentasse roubar o cálice. Ele sabia que não era o único a cobiçar o malfadado objecto. Via-o no olhar de todos quantos se acercavam do Pirata. Via-o como se nele próprio encontrasse a verdade daqueles homens. Via-se. Por isso sabia que devia ser astuto e rápido. Criou um plano. Insatisfeito e receoso, criou outro plano. E para não ser surpreendido por algum imprevisto, ainda se assegurou, atestou, certificou, confirmou com ameaças aqueles que comprou, para cumprirem o seu trabalho. O silêncio dos seus actos guardou-o para si. Nem com a jovem com quem trocava privadamente suspiros ardorosos e palavras engatadoras e indaganços fisiológicos, desabafou.


A primeira parte do plano foi relativamente fácil de conseguir. A confiança, se bem que limitada que o Pirata Gagueiro tinha com ele, proporcionara oportunidades que a mais ninguém se apresentara. O simples acesso aos aposentos do pirata político fora crucial. Aproveitando um descuido, Braguinha aproveitara a oportunidade para conseguir uma impressão do cálice num pedaço de barro que o artesão, encarregue de fazer a cópia, lhe dera.


O artesão fora, algumas poucas vezes, companheiro de aventuras nocturnas dos dois amigos. Tudo com o intuito de observar bem a peça para que não houvesse erros de maior, pelo menos visualmente. Feita a cópia, teriam de actuar o mais rápido possível. Depois de trocar os cálices, seria uma questão de tempo até que a troca fosse notada. A noite do assassinato fora por coincidência, também a noite da permuta. A ideia do homicídio não fora dele, não daquela forma... a arma que iria usar dar-lhe-ia contornos mais civilizados. Queria encenar um roubo. O verdadeiro furto havia acontecido ainda em casa do pirata. As ruas escuras dariam a cobertura necessária ao suposto ladrão-assassino e o cálice agora extraviado, o falso, serviria de engodo para desviar as atenções para si próprio. Aquele personagem saído das sombras, fora um bónus. Fez o serviço e nem precisaria de lhe pagar. Ah! Tudo corria bem! Muito bem!


Cara de Cepo chegara a outro impasse. Sentia-se perdido, exactamente como logo a seguir a terem-lhe roubado a jóia. Pensava e repensava em quem teria a peça e na realidade, podia ser qualquer pessoa. Talvez alguém chegado ao Gagueiro o tivesse feito. Talvez aquele político que estava persistentemente com ele? Provavelmente ele saberia de alguma coisa, mas como perguntar por assunto tão distinto sem levantar suspeitas sobre si? Decidiu pesquisar por duas vias – o político que estava com o pirata na altura do assassinato e o vendedor a quem havia comprado o cálice. Ele ainda se perguntava que havia naquele cálice que o fazia tão especial. Quem o teria feito. E que artes usara? Cepo mantinha uma ligação ao objecto que lhe era difícil explicar. Tão-pouco tentara comentar com vivalma. 

O pirata tinha uma vida bastante ocupada pelo bar, restando-lhe pouquíssimo tempo para confraternizar fora do local de trabalho. Aliás, nem precisava, já confraternizava lá o suficiente. Dava graças por ter um bar onde todos os clientes eram piratas. Ninguém mais se atrevia a colocar ali os pés, excepto alguma mulher obstinada por levar mais umas moedas para alimentar a prole ou divertimento remunerado. Era sabido que esta clientela gostava era mesmo de beber e pândega, e não tinha muita propensão a desabafos vindos do mais profundo da alma. Nem os piratas tinham alma. Vendiam-na à primeira oportunidade quase sem regatear preço.

Com essas primeiras moedas pagavam a entrada no mundo da pirataria. Porque nem sempre era vocação familiar, por vezes necessitavam comprar um lugar num corsário, mesmo que fosse para lavar o convés. Certas mães tentavam por tudo que os filhos seguissem outros caminhos na vida, mas o mar enfeitiçava-os. Fugir das saias da mãe também. A promessa de aventura, tesouros e mulheres em cada porto, apelava aos jovens que, à falta de melhor perigo, enveredavam pela fantasia e promessa de governar os mares salgados, solitários e amargos – coisa que só muito mais tarde compreendiam. Assim aprendiam o mundo e se tornavam tão duros como a vida que levavam. Porém amavam tanto essa vida, que se o mar lhes faltasse, secavam-se-lhes as veias e tremiam, qual bêbedo à espera da primeira rodada após o descanso forçado do sono ressacado.

Cepo ganhara uma nova vontade de viver ao descobrir sobre quem, por direito, se vingar. Achava estranho agora que de novo havia perdido o paradeiro do copo, essa mesma vontade se reafirmar. Nunca fora tão viciado por algo como pelo cálice. Nem mesmo pelo mar que chegara a percorrer em tempos desaparecidos da memória com a ajuda do álcool. Descobrira que a melhor maneira de curar um vício, seria substituí-lo por outro. Desta vez, desejava banquetear-se nessa dependência, nessa lama. Há qualquer coisa intrínseca no ser humano que o chama para o cataclismo ainda que saiba racionalmente que é má, muito má ideia - o desejo do abismo consegue então, ser o ar que o alimenta.

Braguinha fez-se muito caseiro por uns dias. Queria experimentar o cálice no sossego da refeição caseira que conseguira que a rapariga lhe preparasse. Não devia ser visto em posse do objecto furtado. A forca não estava dentro dos planos para si traçados. Não! Queria bem o contrário. Um alto cargo no governo seria satisfatório para já. Não ficaria por aí, mas sabia que toda a ascenção é feita no decorrer do tempo. Teria de ser paciente ou então... fazer um outro plano, desta vez com outros propósitos – Será que o poder do cálice chega para me fazer presidente? – Estava disposto a fazer com que a resposta fosse positiva. Olhava o copo e a sede de poder tornava-se insuportável. Chamava-o. Às vezes quase duvidava quem na verdade havia feito os planos. Às vezes, aquando sentado ao lado do pirata enquanto ele usava o cálice, sentira-se fora de si, levado por pensamentos que nunca ousara antes. Simplesmente por olhá-lo, tinha provocado efeito em si e cedera-lhe. Perguntava-se se aquele objecto estava realmente enfeitiçado. Ah... mas que prazer deixar-se enfeitiçar por ele... O cálice ainda apenas entrara na vida do homem e já o apagava em desejos para além do copo em si. Estava na hora de o apreciar.


Era um momento solene. A respiração fugia-lhe. As mãos tremiam-lhe mas agarravam firmes, o cálice. Estava arrebatado. Tentava controlar-se. A cabeça viajava à velocidade do futuro mais longínquo. Já se via presidente, a falar para o povo que o ouvia submisso. Sacudia-a, a cabeça. – Mantém-te atinado. Ainda falta muito para lá chegares... – Destapou finalmente o cálice e arregalou os olhos. O que beberia? Pousou o cálice na mesa após o observar com cuidado. Sentiu-se perdido no quarto. O que iria beber? Bom, o que tinha, excepto água. A água enjoava-o, como se o ajudasse a re-saborear o hálito constante da boca meio imunda. Encontrou uma garrafa entre os papéis, livros e lixo da sala. Antes de entornar o conteúdo da garrafa, cheirou o cálice. Meteu o nariz lá dentro. Fechou os olhos. Deleitou-se. Hum... Se antes de o utilizar já estava em êxtase, depois de beber... – O que será me que vai acontecer? – Perguntava-se inseguro. – Não me vai matar pois não? – Hum... – Já chegaste até aqui, não vais ficar pelo meio, pois não? – Quando se sentia inseguro, tinha por costume falar para si na terceira pessoa acabando por chegar a consenso, mais tarde ou mais cedo. Precisava de se convencer. Estreou o cálice com o suco alcoólico, fez o líquido percorrer as suas paredes cristalinas. Saboreava cada micro-segundo. Sabia que a sua vida estava prestes a mudar. Sabia-o. Levou a taça à boca como quem reza, primeiro elevando-a, depois, levando-a aos lábios secos, ávidos daquele néctar desconhecido.


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domingo, 2 de janeiro de 2011

O Cálice da Vingança - Parte 3/7

O sucesso e a pequena fortuna acumulados em poucos anos de cidade, chamaram a atenção para a sua pessoa. Os homens apontavam as mulheres, mas eram eles que mais cuscavam, ali e arredores. Sendo-lhes favorável, não tinham pudor algum em iniciar rumores ou intrigas. No fundo, eram mais parecidos com os piratas do que gostavam de pensar. Só que os piratas éram-no abertamente. 

E os rumores diziam que o Pirata Gagueiro usava qualquer coisa, magia negra. Sabiam que ele apenas bebia daquele cálice estranho. Não deixava ninguém aproximar-se dele e se lhe perguntavam, agia com estranheza. Tornava-se esquivo e agressivo. Era sabido que ele tinha as suas manias. Apesar de se vestir segundo a moda na cidade, continuava a usar aquele chapéu de pirata – Um pirata sem o seu chapéu, é apenas meio pirata! – Berrava. Digamos que tinha umas arestas a limar... Mas a curiosidade de quem anseia pelo poder, não tem limites e a corrupção entre os homens do pirata político era gritante. Todos tentavam saber os truques mais ocultos, Gagueiro não se descosia nem para os dele. 

Vários políticos davam-se com o pirata e Braguinha era um deles. Homem de maneiras aprendidas e ambicioso, com tal identificava-se com Gagueiro. Elegante, a cara desenhava o contorno do instrumento musical que lhe dava o nome. Eram colegas de algumas aventuras menos políticas e menos morais. Um com o outro aprendiam, cada qual a especialidade do amigo. Braguinha requeria sempre o companheiro para seu padrinho de desafios. Aprenderam a defender-se um ao outro e a retirar daí todas as vantagens. Faziam quase tudo juntos, excepto as actividades mais íntimas de qualquer casal, porque ambos eram muito machos. E divertiam-se muito sempre que percorriam os bares na noite. Bebiam e comiam interminavelmente. O pirata, já sabido das lides de beber, deixava o amigo tomar-lhe a dianteira para lhe puxar pelos segredos que, já sem defesa, desbobinava alegremente. Só depois relaxava, o pirata Gagueiro, e bebia finalmente do seu adorado cálice.

O cálice... continuava a sua estratégia. Este apercebeu-se da contínua aproximação do Braguinha e estava resolvido a finalmente dar mais passos no seu plano.
Cara de Cepo chegara à cidade. Procurou pelos bares onde encontrar aquele que, segundo os pensamentos afluentes na sua árdega mente desde que vira o maldito cartaz, se tornou o seu inimigo. mortal. Sentava-se nos cantos mais escuros de cada bar e sondava. Tornara-se bastante insidioso. Totalmente vestido de negro, ninguém o reconhecia à primeira vista. Foi assim que logrou encontrar o político pirata. Alguém avistara-o naquele bar e Cara de Cepo correu ao seu encontro. Entrou e esperou que ele e o colega saíssem. Não tardou muito.

A ronda da noite ainda ía a meio. Cantavam os dois embriagados. Cepo saltava de sombra em sombra. Desde o momento em que chegaria à cidade, não tocaria numa gota de rum – prometeu-se. Mas sentia-lhe a falta. Tragava um pequeno gole, o suficiente para aguentar mais um pouco. Mas esses espaços de tempo entre goles tornavam-no mais ansioso e bebia o próximo gole com maior avidez que o anterior. Bebia o rum conforme a sede de raiva e acabava por deitar tudo a perder. Não conseguia terminar o plano. Ou porque havia muita gente nas ruas ou porque se descuidava e caía para a luz tornando-se visível a todas as almas. Outra noite em que o Cálice lhe fugia das mãos. – Amanhã, não escapas! – Tecia, faz algumas noites já.


Mas planos, todos fazem e Braguinha, que nada tinha de inocente apesar de fraco bebedor, também fazia os seus. A noite seguinte foi de borga como hábito. Igualmente beberam juntos para acompanhar a bebida. Braguinha, que tinha por mau costume comer e falar com a boca cheia, salpicava Gagueiro com pedaços meio mastigados, salivados, do seu porco assado. Gagueiro fazia o que podia para se esquivar. O truque, aprendera-o Braguinha nas noites anteriores. Apenas quando o pirata estava sóbrio, é que se desviava dos perdigotos. Não lhe fora fácil, mas forjara as últimas bebedeiras. Entre gargalhadas e piadas e apalpanços às moçoilas que lhes traziam as bebidas, conseguia verter para o chão e para as pessoas ao seu redor grande parte do que deveria consumir com o subir das taças no ar e o tchim tchim típico de quem tem muito a celebrar, outra parte ensopava nas roupas ao deixar a bebida escorrer pelo canto da boca. Ao fim da noite tão-pouco importava o quão molhado estava, a mistura do rum com o suor estagnava o ar, mas parece que os alcoolizados a dada altura, perdem a agudeza de alguns dos seus sentidos...

Alheio a estes planos, Cepo fazia mais uma tentativa de recuperar o que fora anteriormente seu. A perseguição voltara às ruas. Desta vez não podia beber, não, não podia. Tinha de se concentrar. Tudo corria bem. Até as sombras pareciam ajudar de grandes que estavam. Olhou para as lamparinas dos postes, estavam muitas delas apagadas. Havia um par de ruas que se encontravam parcialmente às escuras. Fazia noite de breu. Cepo quase temeu. Qualquer coisa poderia acontecer em ruas destas, no entanto sentiu-se encorajado e protegido pela noite. Ía ser agora, sabía-o!

Aproximou-se por trás dos dois homens.
- Quem está aí? – Perguntou Gagueiro meio agressivo, meio borracho.
- Os cavalheiros podiam dar-me uma moedinha para juntar umas batatas à sopa dos meus filhinhos? – Perguntou insinuado, passando-se por menor do que na realidade era, Cara de Cepo.
- Ah! Vá trabalhar homem! – Respondeu o político com maus modos e voltou ao caminho.
O companheiro riu. Ambos riram. Nem foi pela situação do pedinte, mas pela palavra “Cavalheiros”. Eles sabiam que não o eram de todo, embora o aparentassem. Viviam às custas do povo, mas para seu abono. As acções que faziam eram apenas propaganda para angariar votos – primeira lição aprendida por Gagueiro e que decididamente o conquistou para a política.

- Por favor, apenas uma moedinha! – Insistiu o homem.

Ambos os políticos se viraram e Gagueiro, que não gostava de ser contrariado ou de dizer a mesma coisa várias vezes, aproximou-se ligeiro de passos pesados. Desembainhava a espada entretanto, com a ideia de intimidar o pedinte. Quando apenas um passo o separava do homem, sentiu o frio que o atingiu abrupto e sem aviso percorreu o corpo num arrepio. Tinha um objecto metálico, cortante e gelado encostado à garganta que lhe cortou as palavras que se preparava para vociferar. Seguiu o metal frio até encontrar a mão que o empunhava. A espada era pouco usada, via-se. Na pouca luz possível que lhes chegava da lua que começava a crescer, viu reflectida na lâmina o rosto de quem não desejava jamais reencontrar. – Tu!
Cara de Cepo não esperou mais. Sabia que a surpresa era sua aliada.

Lá atrás, Braguinha não compreendia o que se passava. Tentava espreitar o que acontecia, sem resultado. Enquanto o pirata caiu no chão, Cara de Cepo fez uma busca rápida entre as roupas e fugiu.
Braguinha, alarmado, após hesitar uns instantes, correu ao encontro do colega, mas era tarde demais... Apenas ouvira – Tu! 

Deixou-se ficar junto ao corpo. O que passara, nada de novo naqueles tempos ou cidade, estava claro. Remexeu também ele as roupas do morto e ao retirar as mãos vazias gritou – Acudam! Ladrão! Assassino!
Cepo já estava longe. Parou quando chegou ao quarto alugado temporariamente. Regozijou-se apertando o tesouro querido contra si. Era tempo de o voltar a ver. Desembrulhou-o do pano em que o pirata político o protegera sempre e colocou-o contra a luz do candeeiro.



- Gagueiro! Mereces o inferno para onde vais, cão! - De joelhos, Cara de Cepo desesperava. O Cálice não era o seu, mas uma cópia. - Matei-te cedo demais...


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