Gaia (Adoa Coelho)

Gaia é a personificação do antigo poder matriarcal das antigas culturas Indo-Européias. É a Grande Mãe que dá e tira, que nutre e depois devora os próprios filhos após sua morte. É a força elementar que dá sustento e possibilita a ordem do mundo. Nos mitos gregos, os conflitos entre Gaia e as divindades masculinas representam a ascensão do poder patriarcal e da sociedade grega sobre os povos pré-existentes.

domingo, 9 de outubro de 2011

O Gelo e a Folha

Era um cristal. Mas não era um cristal daqueles que simplesmente fica pousado num móvel ou pendurando num qualquer tecto de um qualquer palácio fenomenal. Este encontrava-se pendurado no céu. Olhava o Mundo desde cima e ameaçava cair cobrindo tudo de frio. Não tinha culpa ou pena por ser assim. Era-o apenas. Sabia que podia ser terrível. Muitos seres o temiam. Tremiam.


Decidiu-se a descer. Talvez fora um ímpeto interior mais forte, talvez fora alguma força maior que ele e caiu. Bastava de observar o Mundo, agora actuaria nele. Caiu com força. Rápido. Tinha pressa de fazer o seu destino, de ser quem era. Rodava no seu eixo de gelo e lançava braços em seu redor. Queria chegar a tudo. Atingir tudo. Do lar deixado para trás, já não tinha saudades. Tinha uma tarefa a cumprir, qual soldado em missão de vida. Levava a raiva de ser o primeiro a cair nesse Outono. Era suicida a missão, sabia-o.
Ainda lançado na sua raiva, aproximava-se das árvores. - Haveria de as congelar – pensava. - Para a eternidade.

Vinha do Mundo branco lá em cima, sem cor, e à medida que se aproximava e percebia as cores pela primeira vez, apaixonava-se. Agora os seus braços gelados estendiam-se para poder tocar. Observava.

Ela sustinha-se pela última linha de fibra que a agarrava à mãe árvore. Despedia-se. Tão pouco sabia porquê. Tinha de ir. Porquê? A separação custava-lhe tanto. Crescera e vivera sempre ali. Cantara com os pássaros, balançara com o vento. Brincara com a criança que esperava que ela caísse, mas só agora o fazia. A criança desistira. Ela ria-se! A criança pedira aos pássaros que a ajudassem. Que o vento a derrubasse. Que os insectos a cortassem do ramo. Pediu-lhe pessoalmente.. A folha, como só podia ser, era. Ali. Dançava quando era a hora. Juntava lágrimas do céu na sua palma e quando as tinha suficientes, largava-as em cascata. Passava-as a irmãs. Tentava apanhar a criança molhando-a. Queria tanto brincar com ela...
Neste dia cantava. Cantava como nunca o havia feito. O vento ventava-lhe a música, ela juntava-lhe a voz. Fazia coro com as irmãs. Estava feliz. Mas estava triste. Aquela fina linha de fibra estava prestes a quebrar-se. Chegara a hora. 


O cristal... Não fez por mal... Vira-a ali tão linda e quisera tocá-la. Quisera sentir-lhe a pele dourada. Ela era dourada! Mas ela assustara-se e levara a mal. Foram uns segundos apenas. Foi o tempo de se saber liberta e temer a liberdade. 

- Desculpa! – Disse-lhe o cristal. 

Foi quando ela o viu. Era o primeiro cristal de gelo que via na sua vida. Estava avisada que seria frio, terrível... TEMÍVEL! Tremeu sim e esqueceu-se do temer. – Ah!!!! 

O tempo, doce como só ele pode ser, parou-se. Enquanto caíam dançaram os dois, encantados com a beleza um do outro. – Tu és beleza! 

As ranhuras da folha também se estendiam para tocar o gélido cristal. Tocavam-se gentilmente. Giravam. Olhavam-se de todos os lados. Riam! Bailavam às notas do vento. Sorriam. - Quem és tu, que te amo?!

- Sim, Amo-te! – Diziam. E sem se conhecer, conheciam-se.

A eternidade mandara o vento, seu filho - Vai. Dá-lhes esta dança. – Ordenou. O vento fez o que sabia fazer. Abriu a bocarra e soprou. Os amantes não notaram. Como, se viviam?

Quando enfim a folha se deitou no leito de terra, acolheu em si o amante inesperado. O cristal de gelo aconchegou-se entre as veias da sua cama de folha e perdeu-se na existência.

Ela esperava pelo retorno do amante enquanto também ela desvanecia... O frio apoderou-se então dela pregado na saudade. Fora um Amor breve, diriam uns, mas fora total enquanto durara.

(Este texto foi escrito com inspiração de uma música de António Pinho Vargas tocada ao vivo por improvisação - 9 de Outubro do ano de 2011)

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