Visto o cobertor da
noite e ponho o chapéu da memória para escrever este texto.
Comer uma sardinha aqui
(Alemanha) é comer peixe sem alma. Uma fartura daqui é massa
gordurosa disforme. Faltam-lhes o tempero da memória, da recordação
perdida nos anos em que caminhei em direcção ao Porto, ou pelo
menos até à ponte para arranjar um lugar para ver o fogo de
artifício. E o som dos martelos de plástico, especialmente sonoros
nas cabeças dos polícias fardados em noite de turno misturado com
gargalhadas cúmplices ecoa de novo. E as Fontainhas? É lá que
moram as farturas saborosas, a cerveja fresca que a acompanha, o
cheiro das sardinhas que faz escorrer água da boca... É lá que
vive a memória e o sabor, os meus sorrisos e sonhos de infância ao
ver tanta gente na rua, alegre e divertida. E os risos de amigos,
família, uma ou outra pessoa que mais tarde me desfez o coração.
Até a recordação de
aulas de desenho em grupo me assomem.
As memórias podem ter um
peso marcante. Um marca-passos. Leva-nos o coração sem pudor.
Rouba-nos o momento presente, retira o sabor de tudo para o encher de
saudade. Quem deseja viver uma meia vida assim?
Perco o coração para
o passado, assomam-se culpas e arrependimentos, cimenta-se a vontade
de voltar a comer da infância e juventude.
O Peter Pan tinha um
jogo preferido de faz-de-conta em que imaginava comer tudo o que
desejava. Crescemos e não há Pan que resista. Não chega
imaginar, quero o prazer dos dedos sujos, o nariz cheio, os olhos
arregalados e o coração de volta ao peito.
Não me esqueci do doce
Teixeirinha que aquece a tripa e depois a liberta. Ou quão
defraudada me senti a última vez que a comi.
Ó meu rico S. João!
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