Gaia (Adoa Coelho)

Gaia é a personificação do antigo poder matriarcal das antigas culturas Indo-Européias. É a Grande Mãe que dá e tira, que nutre e depois devora os próprios filhos após sua morte. É a força elementar que dá sustento e possibilita a ordem do mundo. Nos mitos gregos, os conflitos entre Gaia e as divindades masculinas representam a ascensão do poder patriarcal e da sociedade grega sobre os povos pré-existentes.

Visto o cobertor da noite e ponho o chapéu da memória para escrever este texto.

Comer uma sardinha aqui (Alemanha) é comer peixe sem alma. Uma fartura daqui é massa gordurosa disforme. Faltam-lhes o tempero da memória, da recordação perdida nos anos em que caminhei em direcção ao Porto, ou pelo menos até à ponte para arranjar um lugar para ver o fogo de artifício. E o som dos martelos de plástico, especialmente sonoros nas cabeças dos polícias fardados em noite de turno misturado com gargalhadas cúmplices ecoa de novo. E as Fontainhas? É lá que moram as farturas saborosas, a cerveja fresca que a acompanha, o cheiro das sardinhas que faz escorrer água da boca... É lá que vive a memória e o sabor, os meus sorrisos e sonhos de infância ao ver tanta gente na rua, alegre e divertida. E os risos de amigos, família, uma ou outra pessoa que mais tarde me desfez o coração.
Até a recordação de aulas de desenho em grupo me assomem.

As memórias podem ter um peso marcante. Um marca-passos. Leva-nos o coração sem pudor. Rouba-nos o momento presente, retira o sabor de tudo para o encher de saudade. Quem deseja viver uma meia vida assim?

Perco o coração para o passado, assomam-se culpas e arrependimentos, cimenta-se a vontade de voltar a comer da infância e juventude.

O Peter Pan tinha um jogo preferido de faz-de-conta em que imaginava comer tudo o que desejava. Crescemos e não há Pan que resista. Não chega imaginar, quero o prazer dos dedos sujos, o nariz cheio, os olhos arregalados e o coração de volta ao peito.

Não me esqueci do doce Teixeirinha que aquece a tripa e depois a liberta. Ou quão defraudada me senti a última vez que a comi.


Ó meu rico S. João!

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